16 abril 2014

Mitos e mentiras sobre a ditadura militar




Por Carlos Frederico Guazzelli*
O trabalho desenvolvido pela Comissão Estadual da Verdade, desde que foi implantada há um ano e meio, tem ajudado a desmascarar algumas inverdades propaladas pelos defensores do regime ditatorial imposto ao país com o golpe de estado que acaba de completar cinquenta anos.
A começar, e como tivemos oportunidade de chamar a atenção em artigo publicado neste Sul21 no último dia 31 de março, pelo próprio caráter violento que a ditadura assumiu desde logo: já nos seus primeiros dias, as novas autoridades trataram de sequestrar, prender, torturar e submeter a inquéritos milhares de pessoas ligadas ao governo deposto – que foram, em conseqüência, demitidas, aposentadas, cassadas e levadas ao exílio. Chegou-se ao extremo de matar dissidentes – bastando lembrar, a propósito, a morte do tenente-coronel aviador Alfeu D’Alcântara Monteiro, metralhado pelas costas em plena Base Aérea de Canoas, no dia 04 de abril de 1964.
Não se tratava de forma alguma, pois, de uma “ditabranda”, como chegou a apregoar cinicamente, há pouco tempo, certo periódico do centro do país, cujos proprietários, aliás, participaram ativamente do financiamento, montagem e funcionamento da odiosa Operação Bandeirante – como era chamada no final dos anos 1960 a sede do DOI-CODI do IIº Exército, o principal núcleo de operação e tortura do sistema repressivo político, em São Paulo.
Igualmente falsa é a afirmação de que o processo de justiça de transição, ora em curso no país – que ganhou grande impulso desde a criação da Comissão Nacional da Verdade – não passaria de mero revanchismo, uma vez que as investigações visariam apenas “um dos lados”. Busca-se com isso esconder o fato de que os governos ditatoriais implantados à época no país, submetiam seus adversários a processos criminais, instaurados perante a Justiça Militar Federal, imputando-lhes a prática de “crimes contra a segurança nacional”, tipificados em lei precipuamente editada para reprimi-los. Muitos dos seus oponentes, por conseguinte, ali condenados, cumpriram integralmente as penas que lhes foram impostas; outros tantos, inclusive, foram absolvidos.
Mais importante, ainda, é destacar que a atuação dos órgãos do sistema repressivo então montado foi marcada, sistematicamente, por abusos e ilegalidades – isto frente à própria legislação então instituída. De fato, milhares de pessoas, muitas delas sem qualquer atividade política – simplesmente por serem parentes ou amigos de militantes – foram presas, sequestradas, torturadas e, algumas centenas delas, mortas e “desaparecidas”.
Como se observa, portanto, não há “outro lado” a investigar e punir: todos os que ousaram resistir, já foram castigados, até mesmo ilegalmente, pelo sistema repressivo montado pelos militares.
Pior ainda: durante seu último governo, estes últimos impuseram, como condição para anistiar os milhares de brasileiros e brasileiras exilados, expurgados, presos e processados pelo crime de se terem oposto ao regime, a chamada “auto anistia”. Ou seja, enquanto foram anistiados, integralmente, todos os responsáveis pelos delitos cometidos pelos agentes da repressão política, a anistia aos opositores da ditadura não foi “ampla, geral e irrestrita”, como queria a população brasileira, pois dela foram excluídos “…os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal” (Lei de Anistia – Lei n.º 6.683/79artigo 1º§ 2º).
Aliás, reside aí outra mentira comumente propagada pelos acólitos do sistema ditatorial que vitimou nosso país por mais de duas décadas: a de que a anistia concedida naquele diploma para seus torturadores e sicários, teria resultado de um “acordo”. Tal acordo, na verdade, nunca existiu: a Lei de Anistia, nos termos em que foi editada, não resultou de qualquer pacto ajustado entre os governantes e seus opositores: muito ao contrário, ela redundou de vitória do partido do governo (ARENA) sobre a oposição (MDB), por escassa maioria, fruto dos artifícios mediante os quais os detentores do poder manipulavam o parlamento.
Por fim, diante da alegação de que o trabalho das comissões e comitês de memória e verdade volta-se para o passado – outro engano propositalmente difundido para continuar garantindo a impunidade dos crimes da ditadura – é preciso lembrar que as políticas de esquecimento, até hoje vigentes, têm impedido o país de efetivar, com a plenitude desejável, a democracia duramente conquistada há apenas três décadas. Com efeito, a reconstituição da verdade histórica do ocorrido naquele período, pela memória das vítimas e testemunhas (e mesmo dos autores) das graves violações a direitos humanos, então praticadas pelos servidores militares e civis do regime ditatorial, e sua consequente responsabilização criminal, é condição indispensável para a democratização efetiva da esfera pública – incluindo desde a desmilitarização das polícias, até o controle democrático da informação.
Carlos Frederico Guazzelli (foto) é coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS
*Fonte: Sul21  http://www.sul21.com.br/

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