14 dezembro 2008
'Orra, meu...'
Diarréia, Sifu
* Por Sírio Possenti
Nesta semana, os temas abundaram. Há ocasiões angustiantes, fica-se procurando um pretexto para a coluna, e nada. Nenhum cidadão diz alguma coisa peculiar (ou a mídia não põe a peculiaridade em circulação) e nenhum colunista diz nada de muito estrambótico sobre sintaxe ou ortografia.
Mas, neste começo de dezembro, os deuses foram generosos: Cony reclamou da linguagem acadêmica, porque não entendeu passagens de um texto, Lúcia Guimarães escreveu sonoras bobagens sobre gerundismo em sua coluna no Estadão, Lula teve um comportamento no mínimo informal, em pronunciamento no Rio de Janeiro (falou "diarréia" e "sífu", abalando os sólidos alicerces morais e etiquetais da sociedade brasileira), um jornalista de Brasília analisou pérolas do ENEM, artigo meio bobo que mereceu análise muito competente de Marina Silva etc.
Vou ficar com o caso Lula. William Bonner anunciou o pronunciamento no Jornal Nacional, prevenindo a Nação de que o presidente tinha usado linguagem (cenho franzido, olhar de lástima dirigido ao Hommer Simpson que ele imagina do outro lado da tela)... "extravagante".
Lula, à vontade, desancou os que têm uma "diarréia" de mercado e depois pedem socorro ao Estado. Em seguida, defendeu sua posição de animador da economia; alegou que não pode ficar dizendo que há crise, que ele tem que incentivar o povo. E fez uma comparação (não venham dizer que foi uma metáfora, por favor...): se um médico vai falar com um doente, o que deve dizer? Que vai melhorar, que vai sair dessa, ou deve dizer que o cara "sífu"? Pois foi o "sífu" que colocou o país em polvorosa.
Uma cidadã que viu o telejornal escreveu à Folha de S. Paulo dizendo que achava a linguagem de Lula indecente, e não extravagante (disse mais: que está entre os 30% que desaprovam lambanças e não apóiam o presidente). Um leitor foi ainda mais radical: achou a coisa tão ruim que está pensando em renunciar à cidadania brasileira.
Contam os jornais que o discurso do presidente foi transcrito sem o "sífu" em algum site oficial, mas que a "palavra" voltou mais tarde ao documento. A Folha menciona o episódio em seu editorial, e lhe dedicou um sermãozinho. Seu ombudsman, no domingo, disse que tanto destaque cheirava a preconceito. Um articulista comentou o caso na ISTOÉ. Cony voltou ao assunto no dia 9/12, terça-feira, para dizer que se espantou mesmo foi com a palavra "chula", encarregada de qualificar a fala presidencial, e contou que, na infância, achava que esse era um dos muitos nomes da genitália feminina...
Juro que eu não sabia que o país era tão sério! Todo mundo anda pelado a qualquer pretexto, todos/as mostram a intimidade e as partes, os domingos à tarde da TV são quase aulas de anatomia, e o homem não pode falar "sífu". Francamente!
Sim, sei, ele é o presidente, e existe a tal liturgia do cargo. O que suportamos e achamos normal na boca de uma personagem de Rubem Fonseca ou de Bocage desaprovamos no discurso presidencial. O que achamos normalíssimo nas declarações pedagógicas vespertinas do Faustão fica abominável na boca do presidente. Tudo bem. É claro que há uma distribuição social do palavrão, seja por falantes (homens podem mais que mulheres - ou podiam), seja por contextos (o que se pode dizer em arquibancada não pode em palanque).
Mas vejamos o episódio um pouco mais de perto. Merece uma pequena avaliação técnica, digamos assim. O curioso é que tenham acusado Lula de empregar um palavrão quando usou uma forma que se destina exatamente a evitar o palavrão. Sim, pois "sífu" não é um palavrão. Estudiosos dos tabus informariam sobre formas como essa exatamente o contrário: que, para não dizer palavras tabu, no caso, um palavrão, as sociedades inventam "derivativos": alteram a forma ofensiva ou perigosa (abreviam, trocam um dos sons etc.).
Por exemplo, dizemos "diacho" para não dizer "diabo" (sem falar que dizemos "o cujo", "o coisa ruim" etc.), dizemos "orra, meu!" para não dizer "p..., meu!" assim como dizemos "sífu" para não dizer todos sabemos o quê. Tanto sabemos, que a mídia achou que Lula disse o que todos achamos que ele disse, embora não o tenha dito.
Escrevi alhures que acho essa coisa de cerimonial uma quase bobagem. Para exemplificar, dava meu testemunho de que as únicas coisas que aprovei no presidente Figueiredo foi sua grossura no campo da etiqueta: achei ótimo ele dizer que preferia cheiro de cavalo ao de povo, que achava o leite de soja uma droga, que, se ganhasse salário mínimo, dava um tiro no coco. Grossura? Claro!! Mas você preferiria que ele mentisse?
Fico deveras impressionado com a pudicícia da sociedade brasileira, especialmente da TV Globo!! Mas não é lá que passa, só para dar um exemplo, o BBB? Ou será que Bonner estava se referindo à palavra "diarréia"?
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*Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.
** Do Terra Magazine, via Vi o Mundo
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