27 dezembro 2014

O busto de Costa e Silva e a fragilidade da democracia



Por Paulo Muzell*
A medida da solidez das instituições de um país depende da consolidação da hegemonia do poder civil. Quando as forças armadas se arvoram em poder – braço armado – a serviço de uma classe ou de uma oligarquia atrasada e às vezes sangrenta, submetem e rebaixam o país a um caricato papel de republiqueta. Infelizmente, muito presente no cenário político – atual e passado -, de muitos países da América Latina, África e Ásia.
Lentamente as coisas estão mudando, mas há um vasto caminho a percorrer. O Brasil, o maior e o mais importante país da América Latina, é por isso chamado de “emergente“. Apesar de alguns pequenos e recentes avanços tem, ainda, instituições muito frágeis. Não simpatizo com a expressão “emergente”: tudo que emerge, por estar em meio líquido, pode submergir. Às vezes de inopino, quando menos se espera.
As oito décadas e meia que nos separam da República Velha podem ser divididas em quatro períodos que alternaram regimes de exceção e de normalidade democrática, com eleições livres e diretas.
De 1930 a 1945 vivemos a era Vargas; de 1946 a 1964 elegemos pelo voto direto cinco presidentes. Março de 1964, nova ruptura: seguem-se vinte e um anos de ditadura militar. Em 1989 tivemos a volta das eleições diretas. Talvez por falta de costume, o primeiro presidente eleito pelo voto soberano da população – Fernando Collor de Mello -, durou pouco, afastado por graves denúncias de desvios e corrupção.
Foram quatro décadas de regimes autoritários e 45 anos de governos democráticos, escolhidos pelo voto direto.
Esta breve síntese histórica fala por si só, evidencia a fragilidade das nossas instituições, que agora, mais uma vez, estão sendo postas à prova nos dois meses que seguintes à reeleição de Dilma Roussef.
Neste mês de dezembro a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada por lei federal concluiu e entregou à presidente da República seu relatório, resultado de dois anos e sete meses de trabalho. Mais de um mil e cem depoimentos colhidos, examinados milhares e milhares de documentos do período a CNV apurou que foram mortas 421 e torturadas mais de 20 mil pessoas. O relatório pede a revogação da anistia dos torturadores e sua punição: não é possível anistiar crimes contra a humanidade, imprescritíveis segundo as normas de direito internacional. O relatório declara responsáveis pelos crimes os generais-ditadores: Castello Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo.
Embora a CNV tenha desenvolvido seu trabalho de reconstituição histórica e feito as justas recomendações que eram esperadas, na verdade o Brasil é o mais atrasado dentre os países recentemente vitimados por ditaduras. A nação varreu para “debaixo do tapete” os crimes. Finge que não aconteceu porque não quer ou não consegue punir os hediondos crimes cometidos no passado recente. A Argentina, o Uruguai e o Chile julgaram com rigor os agentes públicos que torturaram e assassinaram. Penas duras, até prisão perpétua foram aplicadas. O Brasil reluta: os militares resistem, não se submetem às decisões do ministro da defesa e da presidência da República. Se recusaram a abrir os seus arquivos. Ano após ano os generais de pijama do Clube Militar comemoram com alarde o 31 de março, apesar das proibições. A posição do nosso judiciário é uma vergonha. Em 2010 sete ministros do Supremo Tribunal Federal votaram contra a revogação da lei da Anistia: Cezar Peluso, Eros Grau, Carmen Lúcia Rocha, Ellen Gracie, Celso de Mello, Marco Aurélio Mello e, é claro, Gilmar Mendes. Apenas dois solitários votos favoráveis ao fim da nefasta lei: Ricardo Lewandowiski e Ayres Britto.
A pergunta que fica é: o que acontecerá neste período pós-relatório da Comissão? Teremos na atual composição do Supremo – falta indicar um membro – votos suficientes para revogar a lei da Anistia? No próximo 31 de março de 2015 os militares vão comemorar novamente o aniversário do golpe? Serão trocados os nomes de logradouros que homenageiam os generais-ditadores, ou retirados bustos e estátuas colocados em sua homenagem? Recentemente aqui em Porto Alegre um vereador do PSOL aprovou uma lei alterando o nome de uma importante avenida da cidade de “Marechal Castello Branco” para “Da Legalidade”. Fortunati pipocou, “lavou as mãos”, não quis sancionar a lei, traiu seu líder maior, Leonel Brizola. A lei foi sancionada pelo presidente em exercício da Câmara, vereador Mauro Pinheiro.
Infelizmente, tudo indica que será muito difícil que sejam atendidas as justas recomendações da Comissão Nacional da Verdade.
Poucos dias atrás o prefeito de Taquari retirou de um logradouro central da cidade o busto do general Costa e Silva, afirmando que estava cumprindo as recomendações da CNV. O busto foi recolocado num museu instalado numa casa em que residia a família do general-ditador. Pois o Ministério Público Estadual (MPE) – constitucionalmente um órgão definido como fiscal da lei, defensor do povo, do patrimônio cultural, do meio ambiente, dos direitos e interesses da cidadania e das minorias – entrou com uma ação determinando que o prefeito reponha o busto no local original. Fica a pergunta: é defensor do povo um órgão que defende a preservação da memória de quem ordenou prisões, mortes e tortura?
Como se vê, começamos mal.
*Paulo Muzell é economista (via Sul21)

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