Por Sérgio Saraiva*
O filho de José agonizava. Julgado e condenado à morte. Não merecera perdão.
E o filho de José pensou em José. Havia muitos anos que não pensava naquele homem. Interessante, delirou, que, na hora da morte, ele lhe viesse à mente. José era morto havia muito. José que acolhera sua mãe grávida e lhe dera seu nome de família e lhe ensinara sua profissão, como só faria com seu primogênito.
E o que faria hoje José, se estivesse vivo? Se jogaria contra os algozes do seu filho e tentaria salvá-lo? Ajoelharia em lágrimas e rezaria por sua alma? O que faz o pai de um condenado, no dia da execução de seu filho?
Mas o filho de José o havia renegado como pai, porque se considerava filho de Deus.
Agora, ouvia o sarcasmo do seu carrasco: “você não é o filho de Deus? Pede para que teu pai te arranque da cruz”.
Tolo, pensou o filho de José: você não sabe o quanto eu acreditei que isso ocorreria. Você não é capaz de imaginar sequer o quanto, nos últimos instantes, eu orei para que isso acontecesse. O quão tão intensamente eu supliquei para que isso ocorresse.
E o filho de José ainda conseguiu reunir forças para, ao menos, mover os olhos para o céu. O céu azul de abril sem uma única nuvem e o sol da tarde deitado em posição que lhe queimava ainda mais o rosto. Tudo imóvel. Nem uma leve brisa que trouxesse algum alento ao seu último momento.
– Deus, meu Deus, por que me abandonaste?
E, então, de repente, sua mente se encheu de luz.
Não, você não é o Deus cruel que abandona o filho que lhe pede socorro. Tal ato indigno de um homem, quanto mais de um Deus. Você não me salva simplesmente porque você não existe. Deus não existe. Somente por essa razão, tampouco, salvou João, meu primo e batista, que lhe louvou toda uma vida de temperança e foi assassinado pela concupiscência do poderoso que continuou poderoso e devasso com sua benção. E assim foi enterrado, com orações em seu nome. Quando não foi assim?
Você é o Deus dos inimigos? Eles nos venceram e agora nos oprimem. Todos os dias os oprimidos rezam pela sua libertação. E todos os dias os vitoriosos agradecem a Deus o seu triunfo. Você nos ensinou que é o único Deus. Qual o sentido disso? O único sentido é que há opressores e oprimidos, mas não há um Deus a mediar essa condição. A inexistência de um Deus nos protege de termos de louvar o Deus dos opressores.
Foda-se o Deus de Israel e sua inexistência. Eu lutei para que os que tivessem fome e sede de justiça fossem saciados. Para que os mansos herdassem a Terra. Para que os pobres de espírito herdassem o Céu e os pacíficos fossem chamados filhos de Deus.
Foda-se não haver um Deus. Foda-se o Deus de Israel na sua inexistência. Minha causa é justa, pago o preço de ser morto por ela.
Não ficará registrado que o carrasco percebeu um sorriso nos lábios do executado. Já vira muitos corpos sem vida. Sabia que o espasmo cadavérico prega dessas peças. Nada comentou – seria alvo de pilhérias dos colegas de profissão, se o houvesse feito.
Quanto ao filho de José, sorrira verdadeiramente. Era um homem que encontrara a sua resposta.
*Via GGN
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