Um mês depois de decreto, falta de testes e de controle sobre mobilidade cobram o preço do governo estadual
O distanciamento controlado por cores de bandeiras
que o governador do Rio de Grande do Sul Eduardo Leite (PSDB) exaltou
como o casamento entre a ciência, a política e a eficiência no combate
ao coronavírus atingiu o pico do fracasso desde que foi implantado há pouco mais de um mês. Na sexta-feira (12), o decreto estadual de 11 de maio,
deu seu último suspiro. Foi quando a Prefeitura de Porto Alegre
anunciou novo decreto para esta segunda-feira (15), restringindo
comércio para tentar retomar a eficiência perdida com o fim do
isolamento social.
Alguns fatores levam à conclusão de que a guerra para o coronavírus
estava perdida no RS e a abertura para a circulação e os negócios só
apressaram a derrocada. Apesar de o governo estadual levantar bandeiras
coloridas e receber elogios, especialistas que acompanham a dispersão do
vírus contam uma história de que se tratava da crônica de um fracasso
anunciado.
Academia é contra
O professor do campus litoral norte da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) Ricardo Dagnino sabe bem sobre o que fala quando
faz críticas severas ao distanciamento controlado. Ele é geógrafo,
demógrafo e o responsável por alimentar o Sistema de Informação Geográfica (SIG), da UFRGS, sobre os casos de coronavírus por município no RS.
Desde que o vírus chegou em 29 de fevereiro, acompanha a evolução dos
números fechados pelas instâncias governamentais de casos da covid-19
no Rio Grande do Sul. Percebeu muitas falhas na organização, registro e
compilação dos dados.
“Não tem como controlar o vírus. Sem teste massivo e sem vacina, não
tem como. Sem testar, não tem como desenhar uma política pública. Este
distanciamento nunca existiu porque as pessoas não param de circular”,
explica Dagnino.
Desde 15 de abril, o governo do estado distribui remessas de testes aos 497 municípios gaúchos / Divulgação
Poucos testes nos primeiros 100 dias de infecção
Desde 15 de abril, o governo do estado distribui remessas de testes
aos 497 municípios gaúchos, segundo dados da transparência da página da
Secretaria Estadual de Saúde do RS. Os testes rápidos recebidos do
governo federal e distribuídos aos municípios somaram 348.460 em 29 de
maio.
Desde 29 de fevereiro, até a segunda-feira (8), ou seja, nos
primeiros 100 dias de infecção, foram realizados 50.245 testes. Do total
recebido do Ministério da Saúde, os municípios e o governo estadual
conseguiram fazer 14,4% dos testes.
Juntando todos os tipos de testes no RS, com resultado até o dia 8 de
junho, 69.653 foram feitos. É um teste com resultado para cada 163
habitantes, considerando a população de 11,37 milhões de gaúchos segundo
projeção do IBGE para 2019. Até essa data, 6.732 casos de infecção por
coronavírus foram detectados no estado. Isso significa que 13,4% dos
testes rápidos (50.245) feitos no Rio Grande do Sul dão positivo.
Extrapolando com uma regra de três simples, se todos os mais de 300 mil
testes fossem realizados, o estado poderia ter detectado entre 40 e 50
mil casos de gaúchos infectados.
A periferização ameaça os mais vulneráveis
Não foi por falta de avisos. Desde os casos da Itália, da Espanha e
até da China e dos Estados Unidos, sabe-se que o coronavírus se espalha
dos centros das cidades e bairros de maior renda para as periferias. É
fácil imaginar que o vírus começou do outro lado do mundo, passou pela
Europa e foi trazido para o Brasil por quem tem maior renda e pode
viajar de avião para outros países.
É o que os cientistas chamam de “periferização”.
O professor do Campus Litoral Norte da UFRGS Guilherme Garcia de
Oliveira é doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. Assim
como o professor Ricardo Dagnino trabalha com dados de dispersão do
coronavírus.
Ele cuida, entretanto, da compilação e análise dos dados mundiais.
Para ele, estudos estão claramente a introduzir mais um fator de
dispersão do coronavírus e da covid-19. A falta de saneamento básico
indica uma causalidade forte.
No Rio Grande do Sul, bairros onde as pessoas que não dispõem de água
corrente em casa para lavar as mãos é menor do que em Manaus e em
outros estados do Nordeste. Daí, quem sabe, mais uma variável capaz de
explicar o menor volume de casos de coronavírus e covid-19 entre os
gaúchos.
“O Rio Grande do Sul está um ou dois meses atrasado. De modo geral,
ainda não chegamos no pico. Não é apenas a questão do intercâmbio de
pessoas. As condições de saneamento básico são uma evidência”,
acrescenta o professor Guilherme.
Segundo ele, fatores sociais como a dificuldade de as pessoas fazerem
isolamento no Brasil, ficar em ambientes fechados e, quem sabe, o frio a
partir de junho, podem significar algum surto da covid-19 nas próximas
semanas ou meses em estados mais ao Sul, como é o caso do RS, Santa
Catarina e o Paraná.
“Percebemos que em São Paulo o número de casos e de mortes tem subido
menos nas últimas semanas. Pode ser que estejamos caminhando para o
pico. Mas não se pode dizer que é uma tendência com base em dados de um
dia para o outro. É preciso analisar dados semanais no mínimo porque os
dados diários são muito voláteis. No Brasil, não começamos uma
quarentena de verdade. Tivemos quarentena parcial que está falhando. É
uma tendência o vírus se espalhar pelo estado (RS)”, salienta.
Os números podem ser uma armadilha
Ricardo Dagnino, professor da UFRGS, chama a atenção, no entanto,
para as respostas precárias que os números podem oferecer. Ele é
demógrafo e fala da importância da mobilidade como fator de dispersão do
coronavírus e da covid-19.
Morador de Osório (RS), Dagnino conta que uma fábrica de calçados de
sua cidade não parou de produzir. E o mais preocupante. Muitos dos
trabalhadores que diariamente montam calçados nas esteiras desta grande
empresa vêm de lugares distantes.
“Esse distanciamento não existe. É para quem tem condições de se distanciar”, reforça Dagnino
O professor alerta para outra questão. Como os números da Covid-19
são totalizados? Dagnino conta que os números são fechados nos
municípios pelas secretarias de saúde locais, repassados para os
estados, que, por sua vez, repassa-os à instância federal, o Ministério
da Saúde.
O caminho é longo e tem ainda fatores que tornam os dados ainda mais
imprecisos. Por exemplo, nos fins de semana, os municípios não costumam
manter servidores públicos de plantão para compilar as informações. O
efeito, segundo Dagnino, é não se poder confiar nos dados publicados
“nas segundas e terças-feiras”.
Ele alerta que toda política pública de combate à pandemia depende da
sensibilidade dos governantes. “Enquanto os três filhos mais
importantes do país não forem contaminados e ficarem doentes, o
presidente não vai parar de ficar mandando a vida voltar ao normal”,
salientou.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul -Edição: Katia Marko e Raquel Júnia -
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