Por Eric Nepomuceno, para o Jornalistas pela Democracia*
São tempos estranhos, e em todos os sentidos.
Um dia depois de o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, perguntar onde foi que “erramos” – assim, no plural –, esquecendo da sua própria e decisiva contribuição para que chegássemos ao pior e mais abjeto presidente da história da República – e o primeiro Genocida –, aparece um livro com depoimentos do general Eduardo Villas Boas.
Pela notícia publicada pelo jornal O Globo, é com uma serenidade espantosa que o militar outrora falante, e que uma enfermidade especialmente cruel transformou em arfante, admite não apenas sua participação, mas de todo o Alto Comando do Exército na jogada que emparedou o omisso e poltrão STF para impedir que o julgamento de um pedido de habeas-corpus de Lula fosse aprovado.
Além disso, admite – com uma candidez cavernosa – o apoio não só dele, pessoal, mas de novo do Alto Comando do Exército, ao golpe institucional que tirou uma presidenta democraticamente eleita, Dilma Rousseff, para instalar em seu lugar uma mediocridade chamada Michel Temer, que tratou de adormecer a democracia e instaurar a cleptocracia.
No caso de Dilma, Villas Boas usa como argumento o mal-estar causado na tropa – leia-se: no generalato – pela instauração da Comissão de Verdade, que confirmou as barbaridades cometidas ao longo dos longos 21 anos em que o país viveu nas trevas da ditadura militar.
No caso de Lula, diz ele que o Exército decidiu emparedar os ministros do Supremo Tribunal Federal para impedir uma sublevação nacional.
De onde ele tirou semelhante argumento, ninguém sabe. Diz que empresários pediam intervenção militar, sem mencionar nomes ou, vá lá, setores: o agronegócio? A indústria pesada? A automobilística? Pequenos empresários donos de bordéis? Nunca se ouviu sequer rumor disso.
No famoso tuíte de 2018, Villas Boas diz que a claríssima ameaça à corte suprema do país ocorreu porque o Exército “julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”.
Ora ora, general: e a impunidade que foi concedida aos seus colegas de farda e a todos os agentes públicos que cometeram torturas, assassinaram gente, vexaram e violaram mulheres, desapareceram com cadáveres, durante a ditadura militar?
Essa impunidade, por outra omissão covarde da corte suprema, continua assegurada.
Aliás, o senhor sabia que de todos – todos – os países da América Latina, sem nenhuma exceção, que padeceram brutalidades de ditaduras como a que encobriu o Brasil, o nosso país é o único – reitero: o único – em que não houve punição para os que cometeram crimes de lesa humanidade?
Essa impunidade, na sua visão canhestra e indigna, não merece repúdio. Ao contrário: merece permanecer intocada e intocável.
Ainda não li o livro. Como diria o ilegítimo que o Exército apoiou na hora de derrubar uma presidenta legítima, lê-lo-ei.
Mas o que li em O Globo, jornal que pode ser suspeito de tudo menos de ser objetivo e equilibrado, me bastou para confirmar um pensamento que desde antes do golpe contra Dilma Rousseff rondava minha cabeça e me causava pesadelos: a imagem de distanciamento que as Forças Armadas em geral e o Exército em particular haviam construído depois da retomada da democracia seria mais frágil do que parecia?
Sim, sim. Villas Boas confirma que meus pesadelos se justificavam: os militares brasileiros continuam iguaizinhos. Portanto, qualquer distância deles é pouca.
Se necessário dialogar, que seja na velha e sólida base do confiar desconfiando o tempo todo.
E mais: antes de confiar em seu equilíbrio e respeito à Constituição e aos três poderes que formam a República, melhor confiar na estabilidade psicológica e emocional de Jair Messias ou na decência de Donald Trump.
Augusto Heleno, Hamilton Mourão e Eduardo Pazuello, bem como todos os outros milhares de militares reformados ou na ativa que cercam o Genocida, não são exceção.
Longe, muito longe, nas longínquas memórias do tempo, ficaram figuras como a do marechal Henrique Lott ou do brigadeiro Casemiro Montenegro. Eles sim, honraram o uniforme.
Depois... bem, depois o que veio é o que temos aí. E o que temos aí é, além de indignante, assustador.
Tremendamente assustador.
*Jornalista e escritor. Via Brasil247
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