Lula é símbolo e ameaça, como Mandela foi um dia. Foto: Presidência da República
Lula pode ser o nosso Mandela: o lado bom e o lado ruim da equiparação
Por Jair de Souza*
Neste momento de calamidade em que o Brasil se encontra devido aos descalabros produzidos por aqueles que desfecharam o golpe de 2016 e seus sucedâneos da praga bolsonarista que chegou ao governo, parece que o nome de Luiz Inácio Lula da Silva se vislumbra como o único capaz de retirar a nação do lamaçal no qual ela foi lançada.
Nessa volta fulgurante, sendo visto e sentido como um possível salvador da pátria, muitos têm equiparado a figura de Lula e o papel que ele deve desempenhar por aqui àquele que há algumas décadas fora exercido pelo saudoso líder sul-africano Nelson Mandela no processo de transição que pôs fim ao odiento regime de segregação racial conhecido como apartheid que vigia na África do Sul.
Realmente, é muito positivo que o povo brasileiro conte com uma liderança tão responsável, cativante e motivadora como o é Lula.
Assim como Mandela, Lula também preferiu sofrer prisão e perseguição a trair os ideais com os quais ele havia conquistado a confiança de seu povo.
Não é à toa que o nome de Lula aparece disparado em primeiro lugar em todas as pesquisas eleitorais que vêm sendo realizadas.
Mesmo entre aqueles que nunca simpatizaram com seu nome, Lula passou a ser visto como o único capaz de liderar o Brasil num caminho que nos tire da imensa tragédia em que o bolsonarismo nos lançou.
Porém, também precisamos recordar o que ocorreu com a transição liderada por Mandela na África do Sul e aprender com sua lição.
Precisamos recordar que a luta contra o maldito apartheid foi travada durante décadas pelo povo sul-africano.
O principal órgão dirigente daquela luta foi o Congresso Nacional Africano (CNA), em cujo seio a principal força era representada pelo Partido Comunista Sul-Africano (ao qual o próprio Mandela esteve vinculado).
É fato que Mandela permaneceu encarcerado e incomunicado por mais de 27 anos e, portanto, estava impossibilitado de exercer o comando prático dos embates travados contra as poderosíssimas forças de choque dos racistas sul-africanos.
Embora o papel simbólico de Mandela tenha sido enorme, no dia a dia prático, foram outros os que exerceram as mais importantes funções: Winnie Mandela, Joe Slovo, Oliver Tambo, Steve Biko, etc., muitos deles filiados ao PCSA.
Foram esses militantes que conduziram a luta contra o aparelho de repressão do regime racista e o derrotaram na prática.
Quando da libertação de Mandela no começo da década 1990, as forças sustentadoras do apartheid estavam fragorosamente derrotadas política e militarmente.
Assim que, Mandela era visto como o grande nome que seria capaz de recompor os pedaços daquele país que havia sido destroçado pelos racistas e os beneficiários de sua política segregacionista e excludente.
Politicamente, não havia nenhuma outra força capaz de se contrapor ao CNA em toda a África do Sul.
Infelizmente, nem Mandela e nem os outros dirigentes que estavam mais próximos dele naquele momento se aperceberam do que estava sendo tramado por aqueles que acabavam de ser derrotados no campo de batalha.
Ao perceber que não poderiam ter o domínio das instituições políticas do Estado, os representantes dos interesses da elite racista se deram conta de que lhes seria mais conveniente tratar de manter seu domínio através do controle da economia.
Assim que, enquanto aceitavam fazer concessões a nível de formalidades políticas, deixando os cargos políticos do governo para o CNA, trataram de aferrar-se no comando dos órgãos que controlam o funcionamento econômico.
Também se empenharam e conseguiram impedir que qualquer lei que alterasse de fato a injusta situação econômica do país fosse implementada. Daí que deu-se ampla abertura para tudo o que tinha a ver com o neoliberalismo: Banco Central independente, nada de reforma agrária, legislação trabalhista favorável ao patronato, etc.
Como consequência, independentemente de que caras negras passassem a ocupar os cargos políticos de governo, a situação concreta do conjunto do povo trabalhador acabou por se tornar ainda pior.
É lamentável, mas o fim do apartheid gerou uma acentuação da desigualdade social e a África do Sul veio a se transformar num dos países de maior nível de desigualdade social do mundo, superando até o Brasil nesse quesito.
É fundamental que frisemos, não foi pelo fim do apartheid que isso ocorreu. Foi sim devido ao negligenciamento pelos representantes populares das questões que dizem respeito diretamente ao nível de vida da população. E aqui vale a pena voltar ao caso brasileiro.
É muito bom que Lula receba apoio de todos os setores de nossa sociedade, até dos capitalistas, dos banqueiros, dos donos de terras. Se eles quiserem ajudar a pôr fim à desgraça representada pelo bolsonarismo, bem-vindos sejam.
Mas, não devemos deixar de considerar que são as forças populares que representam a essência do bloco transformador neste processo e neste momento.
Todo e qualquer apoio deve ser recebido de bom grado, desde que não nos impeça de exigir que as reivindicações básicas dos setores populares estejam na primeira linha de objetivos.
Devemos receber de braços abertos a todos os que aceitem a revogação das medidas que retiraram direitos dos trabalhadores depois do golpe de 2016; que aceitem lutar pelo fim da limitação do teto de gastos; que apoiem a luta pela recuperação de nosso pré-sal; que concordem com a recuperação e revitalização da Petrobrás; que defendam a volta do Banco Central ao controle governamental; que se empenhem na recuperação da Eletrobrás e impeçam sua privatização; etc.
Ou seja, todos os que se disponham a participar conosco nas lutas por esses objetivos podem e devem ser vistos como nossos aliados.
Mas, não podemos abdicar dos mesmos sob pena de condenar nosso povo a novas derrotas.
É neste sentido que a lição de Mandela nos deve servir.
Não caiamos no mesmo golpe que o valoroso líder anti-apartheid não soube detectar.
Para uma análise mais detalhada dos acontecimentos que marcaram a transição na África do Sul, recomendo a leitura do capítulo 10 do livro A Doutrina do Choque, de Naomi Klein.
*Economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ. -Via Viomundo