27 outubro 2022

O liberalismo tropical

O liberal brasileiro não discute pautas progressistas em matéria de costumes, o que contradiz a essência mesma do liberalismo


Por Marcelo Duarte (*)

Em recente artigo para este espaço de Opinião (“Bolsonarismo: uma tentativa de definição”) fiz uma breve referência ao avanço eleitoral da pauta liberal nas eleições de 2014 e afirmei que tal progresso foi o primeiro passo do movimento histórico que culminou com a eleição do projeto pós-fascista de Bolsonaro em 2018 – por sua vez, responsável pela articulação entre direita conservadora, extrema-direita e nacionalismo cristão, cujo resultado é a síntese histórica denominada bolsonarismo.

Todavia, não forneci maiores detalhes acerca do que compreendo como “liberalismo tropical”.

O liberal brasileiro se caracteriza, essencialmente, pela pauta econômica neoliberal, cujo mantra é a privatização, eufemisticamente tratada como liberdade econômica.

Ora, em primeiro lugar, qualquer carteira de uma sala de aula de um curso de economia sabe que liberdade econômica não se restringe a privatizações, e tampouco a uma reforma tributária que desburocratize o empreendedorismo, fato que não contestamos.

Todavia, não se vê na pauta liberal brasileira qualquer discussão a respeito da tributação sobre lucro e dividendos, de grandes fortunas e acerca da incidência de impostos sobre o consumo, que oneram, sobretudo, as classes menos favorecidas economicamente, o que também é discussão sobre liberdade econômica.

Em segundo lugar, o liberal brasileiro não discute pautas progressistas em matéria de costumes, tais como o aborto, a homofobia, o racismo, a misoginia, os direitos humanos, o patriarcalismo, o machismo, a manipulação religiosa, os discursos de ódio contra minorias e a desigualdade social.

Bem, isso contradiz a essência mesma do liberalismo, jamais marcado tão só pela liberdade econômica, mas também, e sobretudo, pela defesa da liberdade religiosa, de consciência, de crença, política, moral e, mais ainda, pela igualdade e pela fraternidade, movimentos fundamentais para a solidificação dos direitos civis e políticos nos grandes processos constitucionais do século XVIII (revoluções francesa e estadunidense).

E mais ainda: como todo bom liberal, não vê problemas em se socorrer no Estado quando vítima de crises cíclicas ou especulativas do modo de produção capitalista, e tampouco em buscar financiamento para a expansão de seus lucros em linhas de crédito públicas – muito embora um de seus mantras seja a sonegação de impostos, o qual, juntamente com o da redução da carga tributária, impacta exatamente a criação daquelas linhas de crédito.

É possível se encontrar tais liberais dispersos em partidos tradicionais – sobretudo UNIÃO, PL, PATRIOTAS e PSDB.

Recentemente, sobretudo a partir de 2013, com o avanço dos ditos movimentos “cívicos e de cidadania”, organizações sociais liberais como LIVRES e MBL começaram a tentar pautar a política tradicional, elegendo representantes de um suposto novo liberalismo brasileiro, focado tanto na pauta econômica quanto de costumes.

Foram, contudo, fagocitados pela direita conservadora, pela extrema-direita e pelo nacionalismo cristão, sobretudo a partir das eleições de 2018.

O movimento LIVRES, por exemplo, até há pouco tempo integrou o PSL e integrantes do MBL elegeram-se para o Congresso, em 2018, por partidos como o antigo DEM – hoje UNIÃO, após sua fusão com o PSL. Além disso, hoje não é incomum se ver “empreendedores cristãos”, com suas respectivas pautas moralistas, por todos os lados.

Hoje esses “novos liberais” podem ser encontrados no que restou do NOVO, que sequer conseguiu atingir a cláusula de barreira, e em algumas adesões pontuais ao PODEMOS, PSC e CIDADANIA.

Contudo, sem a construção de um partido forte, essencialmente distinto – na teoria e na prática – do liberalismo praticado até então pelos partidos tradicionais, tais grupos tendem a gradativamente perder espaço no debate público nacional.

Eleitos por conta do antipetismo que predominou nas eleições de 2018 e de seu adesismo incondicional ao projeto pós-fascista de Bolsonaro naquelas mesmas eleições, os movimentos identificados com tal liberalismo estão, a bem da verdade, em busca da construção de uma identidade – a mesma que perderam por conta daquele adesismo.

*Via Sul21 - Foto: Joana Berwanger/Su21

**Marcelo da Silva Duarte, publicitário, bacharel em Direito  e jornalista,  é natural de Santiago/RS; reside atualmente em Caxias do Sul/RS  - Nota deste Editor

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