Após 59 anos do golpe que nos jogou na ditadura mais sombria, conclamamos: lembrar para não esquecer
(Foto: Evandro Teixeira)
Por Denise Assis*
Após 59 anos do golpe que nos jogou na ditadura mais sombria, conclamamos: lembrar para não esquecer. E quem há de esquecer? Quem viveu os horrores (1964/1985) traz tatuado na alma a maldade dos carcereiros, dos torturadores, do Estado cruel, que em vez de cuidar, matou, escondeu e abandonou. Os que não viveram e tomam conhecimento se chocam e se horrorizam.
Banalizamos o mal em nome de não sermos acusados de “revanchistas”. E ainda assim o fomos, como nos apontou o ex-comandante do Exército, Villas Boas, em suas memórias: “Conversas com o General”, em um esperneio infantil, na defesa do indefensável. Queria ele uma versão dos fatos de acordo com o seu modelo. Que se empilhem a seu gosto a história recente, para que eles não intervenham na política e na democracia! A ex-presidente Dilma Rousseff teve o atrevimento de instaurar uma “Comissão da Verdade”, para elucidar os abusos cometidos pelas Forças Armadas no período da ditadura. Pagou com o cancelamento do cargo. Por isso os políticos de vários matizes temem, se omitem e fogem do tema como o diabo da cruz.
Virar a página, foi o que mais se ouviu nos últimos 30 anos. Adiantou? Tivemos ainda assim, o golpe de 2016, com intervenção direta do comando do Exército, em suas conspirações com Michel. Recentemente a quartelada de 8 de janeiro, quando nos mais de mil detidos na baderna não se viu um militar graduado preso em flagrante. Nem mesmo o que ousou apontar blindados para o interventor, que ouviu ameaças e despautérios. Haja almoços e sobremesas para aplainar a relação, para formular acordos, para aliviar a omissão do comandante da guarda, que todos vimos gritar que não era para prender os golpistas. Vão livrá-los do vexame de ir a um tribunal.
Quando perdoamos os algozes, colocando-os no mesmo nível dos que lutaram por liberdade, no obscuro objeto jurídico dos “crimes conexos” - quando conexo é o nosso passado com um presente que não deixa os malefícios do passado passar, porque os traumas, se não remoídos, discutidos e trazidos à luz, incomodam -, sentimento ilhado, morto e amordaçado, volta a incomodar.
O Brasil mudou de regime, mas não recortou os modelos do seu terno. Tantos anos depois, anda com as vestes frouxas e balouçantes da impunidade interferindo nas várias camadas da sociedade. No sistema prisional, onde os presos se amontoam em organizações, como no tempo da convivência com presos políticos, e enfrentam um sistema que os tortura, reproduzindo aquele modelo.
No tratamento às mulheres, postas nuas para serem estupradas nas dependências do Estado. Foram mais de 2.500 atingidas por essa prática vil, na ditadura. Não por acaso esse comportamento ecoa ainda hoje, quando temos um estupro a cada 10 minutos no país, reflexo da impunidade, da naturalização dessa prática. Confiram os números dos feminicídios...
Na forma de impedir que floresça uma juventude preta produtiva e educada. A esses, a morte, a bala perdida ou dirigida, porque sempre haverá a desculpa criada na ditadura com o pomposo nome de: “autos de resistência”. Morrem cerca de 60 mil jovens pretos por ano, no Brasil, pelo simples fato de serem da cor que são, por morarem em periferias e não terem acesso à educação e ao trabalho digno. São alvos dos policiais treinados em academias à luz dos ensinamentos da “revolução”, respaldados na lenga-lenga: eles resistiram. Nós atiramos.
Não enfrentamos o passado por um sentimento que nos ronda desde a monarquia, quando os militares deixaram de ser os “capitães do mato, a soldo dos senhores, à cata de escravos, e ganharam status de tutores da ordem e do bem comum, no ribombar da República. Aprendemos cedo que a esses homens atrás dos uniformes bem cortados, de tecidos rígidos que os assemelham a soldadinhos de chumbo, devemos “temer”. Não foi isto que o ex-vice veio a público dizer recentemente?
Deixamos a nossa história dormitar em arquivos, gavetas, processos inconclusos e acordos e “acochambros”. Não temos como botar de pé a relação que agora tentam construir em mesas de almoços com as Armas em questão. Neste ano fomos pelo menos poupados da afronta das comemorações. A sociedade brasileira consciente espera para 2024, nos 60 anos da data fatídica, que esses senhores já incapazes de empilhar essa história da maneira feita até aqui, com a justificativa de uma “ameaça comunista” que nem eles sabem bem traduzir o que seja, venham a público se desculpar pelos horrores perpetrados. É o mínimo.
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*Denise Assis é jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, ex-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar". É Integrante do Jornalistas pela Democracia.
-Fonte: Brasil247
Reflexão sobre as razões e os horrores da ditadura civil militar consiste em uma necessidade histórica que ainda enfrenta uma resistência. Não podemos mais aceitar uma suposta ignorância sobre a ditadura para justificar defesa de algo tão abominável.
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