20 dezembro 2024

De Auroras e Benetazzos (ainda estamos lutando aqui)

Artigo do jornalista e ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo de Tarso Vannuchi  trata do reconhecimento às vítimas da Ditadura Miltar

Tudo o que esses estudantes representavam sobreviveu na forma de múltiplos avatares. Foto: Acervo FFLCH-USP

Por Paulo de Tarso Vannuchi*

Quem saiu na frente, desta vez, foi a velha USP, aquela universidade sempre apontada como elitista e conservadora. Excelente avanço, muito bem-vindo.

Na mesma semana, na Psicologia, foi diplomada simbolicamente a aluna Aurora Maria do Nascimento Furtado, trucidada sob torturas no Rio de Janeiro em novembro de 1972. Dois dias depois, na FAU, recebeu a mesma celebração honorífica Antonio Benetazzo, o inesquecível professor de meu primeiro cursinho de marxismo, todos sentados nas almofadas de seu apartamento no Edifício Copan, 1968, quando eu tinha 17 anos e ele 26.

Sobre Aurora, Renato Tapajós escreveu Em câmara lenta, enquanto Alípio Vianna Freire compôs lindos versos de combate: “Há que haver sobrado alguma poesia. Há que haver pelo menos a certeza poética emblemática de que a luta continua. E há que haver a aceitação dessa certeza. Porque não posso sozinho dinamitar a ilha de Manhattan e construir uma nova Aurora”.

Na diplomação de Benetazzo pela FAU, Ermínia Maricato doou ao acervo da faculdade a tela que expôs durante décadas na sala de sua casa, onde esse guerrilheiro e notável artista plástico escreveu num canto da obra alguns versos de Fernando Pessoa: “Ai que prazer não cumprir um dever, ter um livro para ler e não o fazer! Ler é maçada, estudar é nada.” (a produção artística de Benetazzo pode ser conhecida visitando o acervo digital do Instituto Vladimir Herzog).

A advogada Eny Raimundo Moreira, recentemente homenageada por nossa prefeita Margarida Salomão, em Juiz de Fora (MG), conseguiu ver o corpo de Aurora, constatando afundamento craniano de um centímetro, resultado do torniquete que os torturadores apelidaram “Coroa de Cristo”.

Sobre Benetazzo, um torturador que decidiu falar sob anonimato relatou que, após dias de tortura sem ceder uma única informação, foi dada pelos superiores a ordem de execução, efetuada com inúmeros disparos.

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Estudantes mortos pela ditadura, Gelson Reicher e Antônio Carlos Nogueira Cabral, diplomados na FMUSP – Foto: Acervo FMUSP

Ainda rolando no solo, o quase-corpo de Benê recebeu no crânio o golpe de um paralelepípedo, arremessado como gesto de misericórdia. O assassino relatou que, por muito tempo, ao abrir um guarda-roupa em sua casa, sempre era assombrado pelo rosto do guerrilheiro.

Um ano antes da diplomação de Aurora e Benetazzo, o primeiro passo tinha sido dado na Geologia, com a diplomação dos alunos Ronaldo Queiroz e Alexandre Vannucchi Leme, assassinados pelo Doi-Codi em 1973, sendo esse último o nome que batiza desde 1976 o DCE da USP, que também já teve como presidente Rui Falcão, deputado federal e ex-presidente nacional do PT.

Sobre Queiroz, sabe-se que os agentes do Doi-Codi saltaram de uma viatura num ponto de ônibus da avenida Angélica, perguntaram a outro indivíduo se era ele aquela pessoa e dispararam em seu rosto. Foi o último presidente do DCE antes de sua reorganização poucos anos depois.

Existem muitas publicações sobre Alexandre, sendo a mais impactante ‘Eu só disse meu nome‘, de Camilo Vannuchi, que veio acompanhada de um didático podcast e de um vídeo-jogral gravado por artistas do campo antifascista, como Daniela Mercury, Dira Paes, Wagner Moura, Pauto Betti, Antonio Pitanga, Bete Mendes, Osmar Prado, Celso Frateschi, Petra Costa e outros do mesmo brilho.

Cada um desses gestos de reconhecimento vai se somando para construir um novo impulso em defesa da chamada Justiça de Transição, indispensável para consolidar uma democracia toda vez que algum país emerge de períodos tirânicos.

O impulso vem se ampliando. Na mesma USP, já foram diplomados médicos Antonio Carlos Nogueira Cabral e Gelson Reicher, meus companheiros de Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) em 1969 e 1970. Nas Arcadas foram lembrados Arno Preis e João Leonardo da Silva Rocha. A Poli agendou diplomações para os próximos meses. Entre os quinze diplomados da FFLCH, foi incluída a guerrilheira Helenira Resende, desaparecida durante a Guerrilha do Araguaia. Em 9 de dezembro foi reinaugurado na Praça do Relógio um monumento com a inscrição dos nomes de todos os membros da comunidade USP assassinados pela ditadura.

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Estudantes da FFLCH mortos em luta contra ditadura e que receberam diploma póstumo.
Foto: Acervo FFLCH-USP

A UnB já diplomou o desaparecido político Honestino Guimarães, último presidente da UNE antes de sua reconstrução. Seguiram-se ou ainda seguem programadas ações na mesma trilha pela UFRJ, UFMG, UFPE, UFRN, UFBA, muitas outras.

A brutalidade com que foram executados esses militantes naquele momento de resistência heroica, precisou ser resumida neste texto, unindo denúncia e memória na busca de um Brasil onde o império da tortura nunca volte a existir. Nunca mais.

Cabe, porém, não falar unicamente do lado terrível dessas histórias. E sim evocar a força vital e a energia revolucionária que emanavam desses lutadores. Tão poderosas que não podem morrer.

Tudo o que esses estudantes representavam em seu tempo sobreviveu na forma de múltiplos avatares. Com outros rostos e assumindo outros corpos, lá estavam eles enfrentando Erasmo Dias na PUC em 1977; seus gritos ecoaram na Praça Charles Miller, na Boca Maldita, no Anhangabaú, na Cinelândia e no país inteiro das Diretas Já; exigiram a derrubada de Collor em 1992, com pinturas indígenas riscando suas caras; uniram-se às greves operárias na Vila Euclides.

Sobrevivendo, é provável que tivessem se integrado à construção do PT, como fizeram Zé Dirceu, Travassos, Genoíno, Vladimir Palmeira e muitos de nossos fundadores.

Neste final de 2024, com tudo o que já sabemos sobre as eleições municipais, vitória de Trump, massacre de Gaza e sobre a trama assassina da ultradireita terrorista, evocar os que tombaram é lembrar, aqui no PT e no campo da esquerda (que não morreu e nunca morrerá, meu querido Safatle) a força dessa energia imortal de quem luta por justiça, igualdade e liberdade.

A trajetória de quem persegue esses horizontes históricos sempre foi marcada por vitórias e derrotas, ciclos de entusiasmo ou desalento. Esses opostos convivem na conjuntura de hoje, em difícil decifração. Ignorar os avanços presentes contribui para desmotivar. Agigantá-los serve somente para contratar novas derrotas.

A USP, por exemplo, que já teve próceres da ditadura como Alfredo Buzaid, Gama e Silva ou Delfim Netto em postos importantes, deve ser aplaudida hoje pelo gesto pioneiro. Sinal de que pode avançar muito mais. A instituição, que nasceu com os sobrenomes Mesquita e Salles Oliveira, criou em 2013 uma Comissão da Verdade que produziu radiografia impiedosa sobre as perseguições e a repressão que se abateu sobre ela.

Entre suas catorze recomendações, propôs a diplomação dos alunos e homenagens aos professores, que atingem quase meia centena de assassinados, muitos dos quais ainda sem localização dos corpos para que pudesse ser realizado o rito milenar de um funeral de despedida.

Comprovou centenas e centenas de presos, entre alunos, professores e funcionários, submetidos a torturas físicas ou psicológicas como regra geral. Perseguições de todo tipo. Número incalculável de atingidos pelo ambiente de terror imperante. Incontáveis ocupações do seu campus principal por forças militares e policiais. E sabe-se que um cenário igual foi reproduzido na vida universitária de todo o país.

A Comissão da Verdade na USP foi uma das muitas – mais de cem – que se espraiaram por entidades sindicais e estudantis, universidades, governos estaduais, Legislativos e na própria capital paulista. Nasceram como fruto da ruptura histórica que foi a conquista da Comissão Nacional da Verdade (CNV), concebida durante o Governo Lula a partir do polêmico PNDH-3 e implementada no Governo Dilma. Seu Relatório Conclusivo foi divulgado em 10 de dezembro de 2014, incluindo 29 recomendações.

Esse gigantesco inventário sobre a violação massiva de direitos humanos no regime militar, num somatório de milhares e milhares de documentos e depoimentos que dão nome aos bois, com datas e números precisos, deve ser considerado um verdadeiro ponto de partida para mudanças que os últimos anos mostraram ser de urgência dramática.

Os construtores da CNV se apoiavam numa tese central: se a violação sistemática promovida pelo aparelho militar repressor não fosse examinada, individualizada e processada em todos os sentidos, erguendo um muro de contenção para que nunca mais se repetissem, elas fatalmente retornariam.

A tese foi comprovada de modo trágico pelo advento do bolsonarismo e da ameaça à democracia que ele segue representando hoje. Numa palavra: sem implementar as recomendações da CNV as academias militares voltarão a produzir outros Bolsonaros, Helenos, Villas-Boas e Bragas Netos.

Defensores de direitos humanos, juristas, intelectuais, artistas, familiares e vítimas daquele brutal ciclo repressivo exigem justiça e um acerto de contas que dificilmente será comparável à prisão de generais e torturadores que ocorreu na Argentina, por exemplo.

Os dois contextos históricos de transição foram muito diferentes e nunca se deve copiar modelos. Mas cabe reconhecer que a não implementação das 29 recomendações mencionadas guarda relação com o avanço fascista sobre as instituições democráticas. Guarda relação com o impeachment de Dilma, votado na Câmara sob elogios ao maior dos chefes torturadores. Guarda relação com os crimes cometidos contra Lula pela Lava Jato. Guarda relação com a intentona do 8 de janeiro. Guarda relação com a conspiração assassina descrita nas 884 páginas de um relatório provido de robusta carga probatória.

Se, nesta virada 2024-2025, o Brasil atravessa dificuldades alarmantes geradas pelo Legislativo mais reacionário de nossa história, se a Faria Lima segue tentando impor seus interesses rentistas contra as agudas demandas sociais de nosso povo, é também verdade que o cenário favorável a desbloquear a agenda da Justiça de Transição torna-se mais promissor a cada dia, até mesmo nas telas da velhaca Rede Globo.

Ajuda muito o explosivo sucesso do filme ‘Ainda estou aqui‘, que desvela o assassinato sob torturas e desaparecimento de Rubens Paiva, parlamentar do PTB cassado em 1964, com desempenho magistral de Fernanda Torres interpretando a heroína Eunice Paiva, que seguiu lutando pela criação de seus muitos filhos e empunhando todas as grandes causas democráticas.

Mais de 2,5 milhões de brasileiros já saíram das salas de exibição contagiados pela emoção de conhecer uma verdade que as Forças Armadas seguem obstinadas estupidamente em negar.

Sob emoção, conseguem ligar essa mentira com a enxurrada de outras mentiras que tomou conta dos legislativos conservadores, das campanhas eleitorais, dos juizados de diferentes tipos, de muitas igrejas, veículos da mídia e redes sociais. Mentiras essas que foram angulares para viabilizar a vitória de Bolsonaro e o assalto às instituições civis por hordas de militares.

Segue vivo o envenenamento pela Doutrina de Segurança Nacional, ministrada ainda hoje na formação militar e policial. Doutrina essa que aponta o fantasma do comunismo escondido em todos os guarda-roupas das consciências culpadas de quem foi mandante, cúmplice ou conivente com as torturas e desaparecimentos. Fantasma do comunismo que enxergam em cada sala de aula, em cada peça teatral, em cada livro, em cada sindicato de trabalhadores.

Nosso presidente Lula não pode permitir que seu terceiro mandato – que o Brasil prefere seja sucedido por um quarto – termine sem novos avanços nesse campo.

É conhecida a sua predileção pelo chamado caminho do meio. Eu mesmo, seu assessor por longos anos e vindo de outro ciclo de lutas, tive o privilégio de aprender muito com ele sobre isso. Lembre-se que o conceito de caminho do meio já está presente em filósofos como Aristóteles e Descartes.

Mas qual caminho do meio seria possível, nesse caso?

Aquele que a correlação de forças possibilitar, mas incluindo necessariamente o reconhecimento público das violações pelas Forças Armadas e comandos policiais.

Para que a cidadania volte a respeitar os militares brasileiros e até se orgulhar de seu papel na Defesa Nacional, para que os pobres deixem de temer a ação das polícias nas periferias, é urgentíssimo reestruturar todos os currículos de sua formação.

Sem meios tons, nem eufemismos, os militares estão devendo ao Brasil a declaração formal e solene de que não admitem em nenhuma hipótese a prática de torturas, que os direitos humanos serão ministrados e assimilados em todas as unidades, que os altos oficiais receberão aulas de Direito Constitucional para que nunca mais deixem de reconhecer a subordinação de todos os aparelhos armados às autoridades civis emanadas do voto popular.

Começando pela aprovação das leis que proíbam de forma taxativa a participação de militares e policiais ainda na ativa em qualquer disputa de mandato eleitoral.

*Paulo de Tarso Vannuchi é jornalista e Mestre em Ciência Política. Foi ministro dos Direitos Humanos no Governo Lula (2005-2010) e membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos/OEA (2014-2017)

**Via Teoria e Debate e 

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