26 janeiro 2009
Sobre o genocídio em Gaza e os discursos vazios...
Carta aos companheiros críticos da Nota do PT
*Por Max Altman
Permitam-me uma digressão. Grande parte dos meus quase 72 anos dediquei ao exame e à militância ativa por uma paz justa e duradoura entre Israel e os países árabes. Os judeus progressistas e de esquerda saudaram a decisão das Nações Unidas em 1947 que resultou na Partilha da Palestina. Apoiaram vivamente as lutas pela Independência de Israel, em 1948, a um tempo que condenavam duramente o massacre terrorista de Deir Yassin perpetrado pelos grupos israelenses Irgun e Stern, bem como a tentativa das monarquias árabes de sufocar militarmente o nascente Estado. Deixaram de apoiar o governo de Israel quando no início dos anos 1950 resolveu atrelar sua política aos interesses geo-estratégicos dos Estados Unidos na região.
Anos mais tarde, em 1982, já como presidente da associação mantenedora da Escola Scholem Aleichem e dirigente da Casa do Povo, entidades judaicas progressistas, ajudei a organizar o ato público e pronunciei o discurso central de condenação à chacina de Sabra e Chatila de setembro de 1982. Durante a I Guerra do Líbano, uma milícia de libaneses cristãos, sob os auspícios do exército de Israel, massacrou milhares de refugiados palestinos, encurralados num campo de refugiados, homens, mulheres, crianças e velhos, sob os olhares complacentes dos generais. O recentíssimo e premiado filme israelense "Waltz with Bashir" narra essa atrocidade com acuidade meticulosa, sem omitir a participação de israelenses. A manifestação reuniu mais de duas mil pessoas. A reação de setores da direita da comunidade judaica foi jogar gasolina no meio-fio, atear fogo que correu ladeira abaixo queimando pneus de carros ali estacionados.
Em meados dos anos 1990, já membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais, respeitando criteriosamente as teses defendidas pelo Partido a respeito, ajudamos a fundar, organizar e dirigir o Movimento Shalom Salam Paz que se constituiu em Ong em setembro de 2000. Esse movimento congregava brasileiros de ascendência judaica, sionistas e não sionistas, de esquerda e centro-esquerda, brasileiros de ascendência árabe, moderados e menos moderados, os de ascendência palestina e todos aqueles dispostos a lutar por uma paz justa e duradoura no Oriente Médio e, em particular, entre Israel e os palestinos.
Foi extremamente difícil conciliar as posições, houve pressão das Federações judaica e árabe e do consulado de Israel, porém conseguiu-se aprovar os pontos básicos: desocupação dos territórios palestinos ocupados com a Guerra de 1967; respeito à Resolução 242 das Nações Unidas com o reconhecimento pelos palestinos do Estado de Israel com fronteiras demarcadas, reconhecidas internacionalmente, seguras e definitivas; criação do Estado palestino, laico e viável; estabelecimento de Jerusalém leste e oeste como capital de ambas as nações; reconhecimento do direito de retorno dentro de limites a serem acordados; direito de acesso à água definidos em acordo binacional; facilidade do direito de ir e vir e do comércio binacional. Forças internacionais sob a égide da ONU garantiriam o cumprimento das decisões.
O Shalom Salam Paz levou essas idéias a dezenas de faculdades e colégios, a diversas instituições, deu dezenas de entrevistas a jornais, rádios e televisões, participou de debates, esteve presente nos Fóruns Sociais Mundiais e foi fundamental na organização de um grande ato público na sede do Partido em plena campanha eleitoral de 2002, com a presença de lideranças das comunidades judaica, palestina e árabe, assim como artistas dessas comunidades.
Uma diabólica espiral de sangue e dor, com raros interregnos, tomou conta da região nos últimos 60 anos. Guerras convencionais, ações terroristas e retaliações terroristas sem fim e com teor cada vez mais cruel e aterrador atingindo pessoas inocentes, governos árabes massacrando palestinos, assassinato de Rabin, negociações de paz torpedeadas ao sabor de interesses estratégicos e de poder, massacre de Munique e chacina de Jenin, intifada um e dois, quando ainda não existiam os foguetes Qassam e as armas eram pedras, homens-bombas explodindo seus corpos em restaurantes, tréguas e cessar-fogos violados a qualquer pretexto.
Esse é o quadro. E qual é a causa? Desde 1948, os palestinos estão condenados a viver submetidos a uma revoltante humilhação. Perderam suas terras, perderam a liberdade e nunca puderam formar e organizar seu Estado. Hoje o cerco se estreitou e se tornou cruel. Sem permissão, não tem acesso à água, a alimentos, a medicamentos. Não tem empregos nem vida econômica normal. Não podem ir de Gaza à Cisjordania, seus dois pedaços de terra. Não lhes permitem circular extra-muros sem passar por vexaminosos controles. Gaza se transformou numa prisão quando seus habitantes votaram em quem seus vizinhos acharam que não deveriam ter votado.
A Palestina hoje é muito menor que a que sobrou da Guerra dos Seis Dias. Colônias são assentadas em suas terras e atrás vem os soldados corrigindo a fronteira. Se há resistência, apela-se para a legítima defesa. Se os assentamentos não são suficientes, que se erga um muro comendo mais pedaços de terra. Se olharmos comparativamente os mapas, vemos que pouca Palestina restou.
Israel não costuma cumprir as resoluções das Nações Unidas e conta para isso com o respaldo dos Estados Unidos. Não acata as sentenças dos tribunais internacionais e viola com freqüência a Convenção de Genebra que regula atos de guerra. Israel é uma potência militar, suas forças armadas são bem treinadas e dispõem de armamentos modernos e sofisticados, capazes de manter a incolumidade do país. Mas não podem estar a serviço dos sucessivos governos israelenses que adotaram a estratégia belicista para impor à região seus objetivos políticos. Sabemos que a atual composição do eleitorado israelense levará ao governo líderes que abraçam a solução bélica. Se de um lado, moralmente, não pode um povo que ao longo da história sofreu o que sofreu impor a outro povo sofrimentos que teve de sofrer, de outro, só a pressão dos povos e da comunidade internacional poderá levar as partes a uma séria mesa de negociações. Geograficamente – e isto é ineludível – Israel é território do Oriente Médio, tendo como vizinhos em todas as direções países árabes. Não é possível sentar-se o tempo todo sobre a ponta da baioneta, ao preço de transformar a nação numa simples fortaleza. Inexoravelmente, vai ter de conviver no futuro, e pacificamente, com seus vizinhos.
Contudo, a comunidade internacional deve abandonar os discursos vazios, as declarações ardilosas, a indiferença, as manifestações altissonantes, comportamentos ambíguos que servem de amparo à impunidade. Que os países árabes deixem de lavar as mãos. Que países europeus, que durante séculos costumavam praticar a caça aos judeus e há décadas passaram a cobrar essa dívida histórica dos palestinos, ponham de lado a hipocrisia de derramar umas tantas lágrimas enquanto celebram secretamente outro lance de mestre. E que os Estados Unidos, sob nova direção, deixem a parcialidade e ajudem a construir a paz justa entre Israel e palestinos, que seguramente servirá para estendê-la a outros rincões.
O Partido dos Trabalhadores historicamente defendeu a coexistência pacífica dos povos, mas jamais a coexistência pacífica entre opressor e oprimido, entre ocupante e ocupado. Esteve ao lado dos timorenses contra o ocupante indonésio, ao lado do povo negro da África do Sul contra os opressores do Apartheid. E estaria ao lado da resistência argelina contra o ocupante colonial francês se àquela época existisse.
O PT quis manifestar toda a sua indignação contra os ataques do exército de Israel, que se reivindica capaz de operações cirúrgicas, contra alvos civis, escolas e hospitais que ostentavam bandeiras da ONU, provocando terríveis mortes de crianças, mulheres e anciãos inocentes. E ressaltou, para por em evidência a crueldade da injustificável ação, que ataques em retaliação contra civis era prática do exército nazista. O exército israelense, o mais moderno e sofisticado do mundo, sabe divisar bem o objetivo. As vítimas civis são chamadas de danos colaterais. Em Gaza, de cada dez danos colaterais, três são de crianças. Não há guerra agressiva que o agressor não diga ser guerra defensiva. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse todo o Oriente Médio.
Por que pretender que numa nota sobre acontecimento gravíssimo e pontual, o PT deva abrandar a condenação para repisar sua histórica condenação ao terrorismo e a defesa da existência de Israel dentro de fronteiras seguras e reconhecidas? Lembro-me que durante a campanha presidencial de 2002, Lula seria recebido pela comunidade islâmica numa multitudinária concentração num restaurante de São Bernardo. Tivemos oportunidade de antes trocar idéias com Lula. Naqueles dias tinha ocorrido atos de terrorismo e retaliações terroristas. Em seu discurso, Lula reafirmou seu apoio à causa palestina, à constituição de um Estado viável, laico e reconhecido ao mesmo tempo em que ratificou a condenação ao terrorismo e a defesa da existência do Estado de Israel. E o mesmo fez, semanas depois, numa concentração no clube A Hebraica.
Não é preciso insistir com os companheiros firmantes da carta ao presidente Berzoini, alguns com altas posições dentro do governo, outros no exercício de sua militância, que o governo lida com questões de Estado e o partido opera no plano programático, político e ideológico. Nem por isso, Lula evitou de tratar o ataque a Gaza como"chacina", o assessor especial Marco Aurélio Garcia como "terrorismo de Estado"e o ministro Amorim como "agressão injustificável".
O Partido dos Trabalhadores tem relações de camaradagem com partidos e organizações de esquerda, de centro-esquerda e progressistas de todo o mundo, inclusive de Israel. As pontes que deseja construir e manter devem ser alicerçadas em princípios comuns, de soberania, de auto-determinação dos povos, de relações fraternais entre povos e nações, de solução pacífica e justa para os confrontos internacionais. Dizer a verdade em momentos cruciais, manifestar indignação quando princípios fundamentais são violados, ajuda a construir entendimento. A dissimulação jamais contribui para uma concertação sólida.
Sem surpresa, leio que os principais porta-vozes da direitona em nosso país, opositores raivosos do governo Lula e do nosso partido, defendem pontos de vista opostos ao expresso na Nota do PT e brandem em seu apoio a carta ao companheiro Berzoini. Com surpresa, recebi mensagem eletrônica de um representante da organização sionista Bnei Brit, em resposta a observações que fiz ao BBPress, que, à parte, conclui com o seguinte: "No anexo para assinatura e posterior envio para a Clara Ant do Documento de desacordo de Militantes do PT à nota do Partido."
Tomei conhecimento da Carta ao presidente nacional do PT pela Folha de sábado, 17 de janeiro. Cruel ironia, bem ao lado, estava estampada uma matéria que relatava o desespero do médico palestino que trabalhou num hospital de Israel, Deen Aboul Aish, cujas três filhas foram mortas por disparo de um tanque israelense: "Minhas meninas estavam sentadas em casa planejando seu futuro e, de repente, foram bombardeadas", disse em hebraico o ginecologista. O Exército disse que a casa de Aish foi atingida porque um franco-atirador disparou do local. Aos prantos, respondeu: "Tudo o que foi disparado de minha casa foi amor, abraços e atos de paz."
*Max Altman é do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT
**Fonte: blog do Zé Dirceu
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