Por Marcelo Zero*
Os grandes objetivos dos EUA com a tentativa de golpe de Estado na Venezuela são muito claros.
Um é econômico e o outro é geopolítico.
O econômico tange à necessidade de ter acesso privilegiado e seguro à
maior reserva provada de petróleo do mundo, que dista apenas 3 dias de
navio das grandes refinarias norte-americanas situadas no Golfo.
Já o geopolítico se refere ao desejo de conter a influência da China e
da Rússia na América do Sul, uma vez que a nova doutrina de segurança
nacional dos EUA colocou essa disputa como prioridade absoluta.
Ao contrário dos que acreditam em kit gay e mamadeira de piroca, essa
ação bélica dos EUA contra a Venezuela é motivada basicamente por esses
dois fatores, e não tem nenhuma relação com suposta preocupação com
democracia e direitos humanos.
Afinal, a longa e tenebrosa história das intervenções dos EUA na
América Latina e no Oriente Médio mostra claramente que a democracia é a
última das preocupações do Departamento de Estado.
Evidentemente, pode-se questionar essa atitude violenta e inescrupulosa dos EUA, do ponto de vista ético.
Contudo, é forçoso reconhecer que há racionalidade nessa ação norte-americana. Eles estão defendendo seus interesses imperiais.
Se a Venezuela entrar em guerra e milhões morrerem, para eles pouco
importa. O importante é que o acesso ao petróleo esteja assegurado e que
o regime aliado da Rússia e da China seja eliminado da face da Terra.
No entanto, cabe a pergunta: quais seriam os interesses objetivos do
Brasil que estariam sendo defendidos ao se apoiar essa aventura golpista
na Venezuela?
A Rússia e a China são nossos rivais? Não, não são. São grandes aliados.
Formamos com esses países, e também com Índia e África do Sul, o
grupo dos BRICS, provavelmente a mais importante iniciativa diplomática
mundial desse início de século. Um grupo que tornou a ordem mundial mais
multipolar e democrática e que elevou extraordinariamente o
protagonismo internacional do Brasil.
Além disso, a China é, de longe, nosso principal parceiro comercial, e
temos com ela uma parceria estratégica que já completou 25 anos.
Em 2018, exportamos para a China quase US$ 67 bilhões, com um saldo comercial positivo a nosso favor de mais de US$ 31 bilhões.
Em contraste, no mesmo período, exportamos “apenas” US$ 28,77 bilhões
para os EUA, com déficit contra nós de cerca de US$ 200 milhões.
Ou seja, exportamos mais do que o dobro para a China que para os EUA, e obtemos com ela um saldo extraordinariamente positivo.
Não bastasse, temos com a China projetos de grande relevância
estratégica, como o de desenvolvimento conjunto de satélites, por
exemplo.
Com a Rússia, embora nossa relação econômica não seja tão expressiva, temos relações políticas e diplomáticas muito adensadas.
A Rússia vê o Brasil como um dos polos emergentes em uma ordem global policêntrica e mais democrática.
Por isso, valoriza muito nossas relações bilaterais. Temos,
inclusive, um Plano de Ação da Parceria Estratégica entre a República
Federativa do Brasil e a Federação da Rússia, firmado em 2010.
E a Venezuela? É um país rival do Brasil? Temos com ela algum
conflito? Dependemos do petróleo venezuelano, como os EUA? O regime
bolivariano foi alguma vez hostil ao Brasil?
Não. É exatamente o contrário. A Venezuela é uma grande amiga do
Brasil. Amizade que vem de longe, mas que se adensou e se solidificou
justamente no período bolivariano.
A progressiva aproximação entre os dois países foi facilitada por fatores históricos e geográficos.
Em primeiro lugar, a fronteira da Venezuela com o Brasil, a mais
extensa daquele país (2.199 km), foi estabelecida definitivamente por um
tratado de 1859. Assim ao contrário do que ocorreu com seus outros
vizinhos, Colômbia e Guiana, a Venezuela nunca teve disputas
territoriais com o Brasil.
Em segundo, as relações bilaterais, sempre foram cordiais, embora pouco densas para a sua potencialidade.
A partir de meados dos anos 90, foram feitos muitos investimentos
conjuntos para o desenvolvimento da fronteira amazônica conjunta e da
infraestrutura energética e de transporte bilateral.
Essas relações, porém, se adensaram muito neste século. Entre 2003 e
2008, as exportações brasileiras para a Venezuela passaram de US$ 608
milhões para 5,15 bilhões, um crescimento de 758% em apenas 5 anos.
Além da quantidade, é preciso também ressaltar a qualidade desse
comércio. Cerca de 72% das nossas exportações para a Venezuela são de
produtos industrializados, com elevado valor agregado e alto potencial
de geração de empregos.
Em 2009, já no início da grande crise mundial o Brasil teve com a
Venezuela seu maior saldo comercial: US$ 4,6 bilhões dólares, 2,5 vezes
superior ao obtido com os EUA (US$ 1,8 bilhão).
Em 2012, o montante agregado de contratos de investimento de empresas
brasileiras na Venezuela ascendia a US$ 15 bilhões, cifra
extraordinária.
Assim, o Brasil lucrou muitíssimo com essa aproximação à Venezuela e
com a entrada desse país no Mercosul, ocorrida justamente no período
bolivariano.
De 2013 para cá, com a grave crise, essas cifras minguaram, mas o
potencial de cooperação, face à complementariedade das duas economias,
continua intocado.
O que pode não continuar intocado é a disposição política daquele país de continuar a ser um grande parceiro do Brasil.
A aposta dos EUA na intervenção e no acirramento do conflito interno
na Venezuela poderá resultar numa guerra civil militarizada e
internacionalizada, com consequências desastrosas para seu povo, sua
economia e suas relações com o Brasil.
A América do Sul, que é um subcontinente de paz, poderá ser converter
numa espécie de novo Oriente Médio, uma região geopoliticamente
instável e conturbada.
Ora, esse cenário não interessa ao Brasil, qualquer que seja o
governo de plantão. Ao Brasil interessa um entorno próspero, pacífico e
integrado e continuar a desenvolver a cooperação com a Venezuela.
Por isso, é do interesse objetivo do Brasil apostar, como manda sua
Constituição, na não-intervenção e na solução pacífica das
controvérsias, buscando sempre o diálogo e a paz.
Mas, mesmo que não ocorra um conflito grave na Venezuela, os EUA, se
tiverem êxito, deverão impor lá um regime que recoloque aquele país como
seu satélite, ressuscitando o status quo ante que havia lá
predominado até o final do século passado, o qual impedia que os
interesses do Brasil pudessem se espraiar naquele país de forma mais
densa.
Assim, mesmo na eventualidade remota de que o regime venezuelano seja
substituído com facilidade, os interesses do Brasil sairiam
prejudicados, pois, ainda nesse caso, sobraria pouco espaço geopolítico
para que o Brasil voltasse a ter relações muito adensadas com a
Venezuela.
O espaço político e econômico que o Brasil ocupou na Venezuela voltaria a ser ocupado pelos EUA.
Sejamos claros: aos EUA interessa a desagregação regional e ao Brasil interessa a integração regional.
Em suma, ao secundar os EUA nessa aventura golpista e
intervencionista na Venezuela, estamos atirando nos próprios pés. É uma
demonstração cabal de estupidez diplomática e cegueira geoestratégica.
Isso é claro para quem tem um mínimo de discernimento e racionalidade.
Mas, ao que tudo indica, é entendimento que está muito além do
alcance de gente que vai a Davos fazer discurso patético e marketing
político no bandejão local.