02 novembro 2019

Prisão imediata após 2ª instância prejudica os mais pobres, aponta Defensoria de SP

Trânsito em julgado significa o esgotamento de todos os recursos; só nessas condições, a Constituição permite condenar

Prisão em 2ª instância traz consequências danosas para a população pobre brasileira, apontam dados da Defensoria de SP / Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Em 2018, 62% dos habeas corpus impetrados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo tiveram decisões favoráveis nos tribunais superiores. Isso significa que uma quantidade considerável de pessoas presas antes do trânsito em julgado tiveram liberdade decretada ou penas reduzidas após recursos. 
Divulgado na última semana pelo órgão, que é responsável por prestar assistência jurídica gratuitamente a pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social, o dado coloca em xeque o discurso de que, caso seja revista, a execução da prisão em 2ª instância beneficiaria “o colarinho branco” – crimes financeiros e de corrupção executados por empresas e políticos. 
O argumento foi utilizado pelo ministro Roberto Barroso durante votação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a legalidade da prisão imediata. Com o placar apertado – quatro votos a favor (Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux) e três contra (Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski) –, o julgamento será retomado na próxima semana, dia 6 de novembro. 
Para Mateus Moro, um dos coordenadores do Núcleo de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública de São Paulo, o índice de 62% de decisões favoráveis no Superior Tribunal de Justiça (STJ) evidencia que a prisão antes do trânsito em julgado prejudica a população pobre do país.
“Quando o ministro Barroso coloca que o que está em jogo não são pessoas pobres, isso não é verdade. A grande massa presa em primeira instância é a grande massa presa em segunda instância. São pessoas jovens, em sua maioria negras e em sua maioria sem escolaridade, pobres ou miseráveis. Temos que colocar os 'pingos nos is' porque a população não tem conhecimento sobre o que está sendo colocado”, afirma Moro. 
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2016, a população prisional brasileira ultrapassa as 726 mil pessoas. Desses, 64% encarcerados são negros e 55% têm de 18 a 29 anos.  
“Em 16 anos, a população carcerária feminina cresceu quase 500%. E quais mulheres são presas? Não são grandes empresárias, senadoras da República. A grande maioria são mulas do tráfico. Pode-se ter discordâncias política e até mesmo morais, mas a questão tem que ser julgada juridicamente, e a Constituição Federal é óbvia. Não é possível trabalhar com dados inverídicos, se não é a manifestação de um voto ilegítimo”, critica o coordenador do NESC.
O defensor público reforça que, por meio dos recursos, há a diminuição de pena e em alguns casos até mesmo a absolvição, o que significa que a pessoa ficou presa ilegalmente ou teve uma sentença abusiva e o direito à ampla defesa negado. “Ninguém vai restituir um, cem ou mil dias que a pessoa ficou presa injustamente. Tem que se aplicar a legislação que está em vigor”.
De acordo com dados do STJ, a Defensoria Pública de SP ocupa a 6ª posição entre maiores litigantes da Corte e o 1º lugar entre as Defensorias. Foram 52,5 mil demandas impetradas pela Defensoria paulista entre outubro de 2014 a setembro de 2019. 
Justiça sem lei
Um estudo realizado em 2015 pela Associação Brasileira de Jurimetria com apoio do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) revelou ainda que as chances de um recurso ser aceito pelo Judiciário paulista aumentam consideravelmente de acordo com a câmara criminal e com os desembargadores que vão julgá-lo. 
A taxa de rejeição de recursos no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) varia de 16% a 81% entre as Câmaras criminais. A discrepância evidencia, portanto, que a decisão sobre o andamento dos processos depende do entendimento de cada juiz. “É o direito como loteria. O juiz decide e não importa o que diz a legislação”, comenta Moro. 
Prisões indevidas, danos irreparáveis
Em tabloide especial sobre a presunção de inocência produzido em agosto do ano passado, o Brasil de Fato levantou dados das defensorias públicas de São Paulo e do Rio de Janeiro que já apresentavam a insegurança jurídica da prisão imediata após segunda instância.
Em 2017, 44% das decisões recorridas pela Defensoria Pública foram modificadas positivamente, com redução de pena ou absolvição dos acusados pelo STJ. Conforme informações da Defensoria Pública fluminense, 49% dos habeas corpus apresentados às instâncias superiores atenuaram, quantitativa ou qualitativamente, a pena imposta por instâncias inferiores.
Casos disponibilizados pelas Defensorias exemplificam as consequências danosas da aplicação da execução da prisão em 2ª instância. Um deles é o de Marcus Vinicius, condenado em primeira instância no Rio de Janeiro por tráfico de drogas privilegiado (quando o réu não tem antecedentes e não integra uma organização criminosa, o que são causas para diminuição de pena) a um ano e oito meses de prisão, em regime aberto, substituída por prestação de serviços à comunidade. 
Contudo, ao aceitar apelação do Ministério Público, o Tribunal de Justiça cassou em 2ª instância a substituição da pena e a aumentou para quatro anos e dois meses, em regime fechado. Somente com o recurso especial, julgado dois anos depois, o STJ restabeleceu a pena original em regime aberto.
Se a decisão de segunda instância fosse executada de imediato, Marcus Vinicius teria cumprido, indevidamente, a pena em regime fechado, com meses excedentes de privação de liberdade, que nunca lhe seriam restituídos.
Já em São Paulo, em 2010, o jardineiro Felipe Eduardo e o servente de pedreiro Jorge Carlos, ambos negros, foram condenados em segunda instância a oito anos de reclusão, em regime fechado, por tráfico de drogas e associação ao tráfico. Sete anos depois, o STJ os absolveu. Caso a pena fosse cumprida após decisão do TJ-SP, os dois trabalhadores teriam cumprido a pena de maneira ilegal. A pedido das Defensorias Públicas, os sobrenomes dos envolvidos foram suprimidos.
*Por Lu Sudré  Edição: Daniel Giovanaz

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