Por Eliara Santana*
Abrimos a porta do armário, entramos nele e vamos caminhando por entre casacos, num caminho comprido que desemboca em uma floresta densa, e então caímos numa realidade paralela que não é a realidade do nosso quarto onde estava o armário.
Esse é mais ou menos o começo do filme “Crônicas de Nárnia – o Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”.
É um filme ótimo – assim como todos os outros da série – que eu vi com meus filhos e super recomendo.
Mas não estou aqui pra comentar filmes, porque sou péssima nisso. Quero falar sobre a realidade paralela a que somos transportados pelo Jornal Nacional em muitos momentos da vida brasileira, como agora.
Porque essa sensação de abrir o armário e aparecer em Nárnia foi a que eu tive ao sintonizar a TV no JN nestes últimos dias. Me senti sendo levada para aquele lugar mágico (e eu adoraria encontrar o Leão), para uma realidade paralela, onde só existem tartarugas marinhas, roubo de celular, campeonato de kitesurf, futebol americano, guerra lá longe, o frio intenso que leva turistas para a Serra Gaúcha e mobiliza redes de solidariedade etc. etc.
Nessa realidade paralela da Nárnia tupiniquim, não há política, não há economia afundando, não há detalhes da briga intestina do PSDB, não há eleições, não há Jair Bolsonaro confrontando as instituições e a própria democracia a todo o momento, não há discussão sobre a proposta de homeschooling que avança no Congresso, não há terceira via e João Dória.
Em resumo, não há nada que mostre que estamos em um momento de grande tensionamento político, social e econômico.
As edições do JN estão pulverizadas e sem grandes blocos temáticos, como em outros momentos – os grandes temas perdem espaço, e temas periféricos ganham muito destaque.
Um exemplo: na edição de 18/05, uma reportagem de três minutos mostrou vários detalhes sobre a saúde das tartarugas, e outra, de dois minutos, mostrou avanços da Federação Americana de Futebol no pagamento a jogadores.
Editorialmente, é claro que o jornal pode ter uma grade variada, com assuntos diversificados.
Mas o JN não é folhetim, não é Globo Rural nem Globo Repórter. É o telejornal de maior audiência da TV brasileira, assistido ainda por milhões de telespectadores e deve, sim, priorizar os temas da conjuntura nacional, como tão bem fazia em outros momentos e contextos históricos recentes.
Estamos a menos de cinco meses desta que será a eleição mais conturbada desde a redemocratização, e é urgente que os temas políticos, econômicos e sociais sejam colocados em destaque na pauta.
Uma reportagem grande sobre a saúde das tartarugas marinhas – que pode ser feita hoje, amanhã, daqui a um ano – no momento em que o presidente da República dá todos os sinais de que vai tumultuar ao máximo o processo eleitoral (na melhor das hipóteses) e em que a inflação galopante está sem controle não faz sentido algum. Ou faz, quem sabe.
Vamos a alguns pontos das últimas edições:
Política e economia encolhem; violência aumenta
Nas edições, o espaço para os temas de política fica cada vez mais reduzido, e os temas de economia (inflação, desemprego, queda na renda, juros etc.) nem sempre estão na pauta – detalhe: não há ministro que aparece para dizer qualquer coisa – como em Nárnia, não há governo.
Os temas violentos – assaltos, roubos, mortes – ganham mais espaço e mais detalhes, assim como os acidentes de trânsito. A briga do PSDB perde lugar para acidente entre ônibus e caminhão no Mato Grosso.
Notícia é, numa definição bem genérica, algo inédito, que traz “novidade” e tem relevância, é o relato de um fato mais importante ou de maior interesse para o público em geral. Ok.
Mesmo a partir dessa definição técnica e superficial, não se justifica que assuntos como a pesca predatória causando diminuição de tainhas ou o transporte de elefantas entre Brasil e Argentina tenham mais destaque no maior jornal da TV brasileira do que a discussão sobre homeschooling que avança no Congresso ou sobre a disputa cheia de golpes do PSDB, que já foi um dos maiores partidos do Brasil.
Enfim, precisamos estar muito atentos para outros componentes do gênero notícia para além dos meramente técnicos, porque esses últimos não explicam o que ocorre no JN.
Bloco de Internacional tem espaço maior
Os assuntos de outros países passam a ser mais importantes do que discutir todas as questões que temos por aqui.
Além da guerra na Ucrânia – variações sobre um mesmo tema –, há muito destaque para questões bem específicas em outros lugares, exemplos: perda do bebê de Britney Spears, casos de Covid na Coreia, venda de trigo da Índia para outros mercados, fim do inquérito sobre as festas do primeiro-ministro inglês na pandemia e por aí vai.
Vejam: não estou dizendo que temas ou assuntos internacionais não devam estar na grade. Pelo contrário. Mas há uma abordagem excessiva e exagerada em relação a vários temas que nem mereciam estar na pauta e que tomam o lugar dos assuntos que nos interessam de fato.
Além disso, a cobertura é eurocentrada – não há nada sobre América Latina, e quando há é negativo, e a cobertura relativa ao Oriente se dá pelo viés da Covid, como o lockdown na China. Sem considerar que muitas das notícias internacionais (como a perda do bebê pela cantora) deveriam estar no Fantástico e não no JN.
Por fim, nada justifica que a notícia da falta de leite artificial para os bebês norte-americanos tenha destaque por dois dias seguidos no jornal – não faltam assuntos por aqui, vale.
Boletim do Tempo ganha mais tempo
A onda de frio extremo que atinge o sul e o sudeste do país deve estar na pauta sim, é algo inédito mesmo. Mas me parece que a onda de frio foi um bálsamo para o JN escapar dos temas difíceis em política e economia – e a tendência de mais tempo para o Boletim do Tempo não é desta semana apenas.
Quero registrar também que a cobertura do JN até se esforça para mostrar o absurdo da situação dos moradores de rua em São Paulo, destaca as ações de solidariedade, mas não problematiza minimamente a ausência do Estado, do Poder Público – nenhuma autoridade é ouvida, é como se o problema fosse somente o frio extremo.
Não se mostra que o presidente afronta a democracia
É bastante claro que a estratégia de Bolsonaro é criar factóides para alimentar seus seguidores e fugir dos assuntos conjunturais do país. E é ótimo que a imprensa não caia nas armadilhas.
No entanto, simplesmente fingir que não há um governo que afronta a democracia e que está destruindo o país – política, econômica e socialmente – não é o melhor caminho, pelo contrário. É preciso que a população saiba o que ocorre, especialmente em ano eleitoral.
Por fim, ao conduzir os brasileiros para uma realidade paralela, que não reflete a situação de gravidade política, econômica e social que o país vive, o JN contribui para a desinformação e cerceia ou interrompe um debate que poderia e deveria estar sendo feito num ano eleitoral.
*Eliara Santana é jornalista, doutora em Linguística e Língua Portuguesa e pesquisadora colaboradora do IEL/Unicamp. Coordenou o curso “Desinformação, Letramento Midiático e Democracia no Brasil”, promovido pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e foi co-coordenadora do I Ciclo de Letramento Midiático do PPGL da Universidade Federal do Rio Grande
-Fonte: Viomundo