‘Recuerdos’ de um bom combate
'E vós, que vireis na crista da onda em que nos afogamos, quando falarem de nossas fraquezas, não esqueceis do tempo sombrio que haveis escapado'. (Bertold Brecht)
Outro dia, ao postar o poema ‘Inverno em Porto Alegre’, veio-me a lembrança um episódio ocorrido ainda na época da nada saudosa ditadura militar.
Já faz um bom tempo, mas, como diria um amigo meu, ‘parece que foi ontem!’.
O ano era 1980, se não estou enganado.
A Argentina vivia, assim como o Brasil, sob as botas implacáveis de uma ditadura militar.
O ditador de plantão era o general Videla, o ‘pantera cor-de-rosa’.
No Brasil, era o general Figueiredo (aquele que preferia sentir o 'cheiro de cavalo' ao invés do 'cheiro do povo').
A tortura, o seqüestro e o assassinato dos presos políticos corriam soltos nos dois países, mas com maior intensidade no país dos nossos ‘hermanos’.
Pois o Videla resolveu fazer uma visita ao seu ‘colega’ brasileiro. E resolveu dar uma ‘esticada’ até Porto Alegre, onde participaria de algumas ‘solenidades’...
Resolvemos então, em solidariedade ao povo argentino, organizar um protesto contra a presença do ditador no solo brasileiro.
O ato político começou por volta do meio-dia no pátio da Faculdade de Direito da UFRGS.
Começou com pouco mais de 50 pessoas, a absoluta maioria composta por estudantes de várias faculdades, a maioria da ‘federal’, membros de DCEs, mais alguns secundaristas e militantes de organizações de esquerda.
Decidimos, após alguns discursos inflamados contra a ditadura de ‘lá e cá’, iniciarmos mais uma passeata.
Começamos a ‘subir’ a Avenida João Pessoa: passo acelerado, palavras-de-ordem, megafones a mil; os estudantes que estavam na ‘fila’ do RU da UFRGS foram chamados a participarem; alguns populares incorporaram-se, a adesão foi aumentando...
Quando a passeata chegou à esquina com a André da Rocha já contava com mais de duzentas pessoas. Para nós, já era uma multidão (segundo os critérios ‘drumondianos’)!
Eu integrava o ‘serviço de ordem’ (segurança) da passeata. Fomos avisados que a tropa-de-choque da Brigada Militar deslocava-se pela Salgado Filho e vinha em nossa direção.
Paramos momentaneamente a passeata para organizar a resistência. A orientação era ‘não aceitar provocação’, mas também não recuar.
Gritamos os slogans de praxe: ‘soldado da brigada, também é explorado’, ‘o povo, unido, jamais será vencido’, ‘o povo, na rua, derruba a ditadura’ etc...
Mas não adiantou, o ‘pau comeu solto’, com muita violência; o número de brigadianos era desproporcional ao dos manifestantes.
Os estudantes começaram a debandar pela Rua André da Rocha, pela Salgado Filho, pela João Pessoa, descendo em direção ao campus central da UFRGS...
Então, um grupo de manifestantes, acuados, sem alternativas, adentrou o Restaurante Universitário (RU), quebrando os vidros do saguão com os próprios corpos, perseguidos pelos brigadianos que não cansavam de baixar o cacetete nas suas costas, cabeças, braços...
Por milagre, ninguém saiu seriamente ferido...
Então, baixada a poeira, decidimos ‘ocupar’ o RU até a saída do ditador Videla do Brasil. A seguir, o RU foi declarado ‘território livre’, símbolo da resistência contra as tiranias!
Organizou-se o comando da ocupação, a vigília, turnos, tarefas... Palavras-de-ordem foram escritas nas paredes, murais... Um palco foi montado. Músicos, atores, militantes revezavam-se ao microfone, todos denunciando as ditaduras latino-americanas e manifestando solidariedade ao ‘movimento’...
Lembro que o pessoal do ‘Oi Nóis Aqui Traveiz’ também esteve lá e representou em nosso palco improvisado...
No outro dia estava marcada a ‘reinauguração’ da Praça Argentina, onde o ditador Videla descerraria uma placa alusiva.
Pela manhã a cavalaria da BM, juntamente com o ‘choque’e seus ‘equipamentos’, cachorros etc., ‘ocuparam’ a praça.
Organizamos então uma nova manifestação na calçada do Centro de Engenharia da UFRGS (o CEUE), que ficava em frente à praça.
Após algumas horas, veio a informação que incendiou os ‘resistentes’: a ‘reinauguração’ da praça e a visita do ditador foram suspensas!
Comemoramos nossa vitória com mais um ato improvisado, ‘mudando’ então o nome da praça para ‘Praça das Madres de Mayo’, em homenagem às mães argentinas (ou ‘locas’, vide a foto acima) que, corajosamente, denunciavam o desaparecimento de seus filhos pela repressão, ajudando a tornar conhecidos mundialmente os hediondos crimes praticados pelos militares direitistas do país vizinho.
Ficamos dois dias e meio naquela luta.
Quando o ditador Videla saiu do Brasil, encerramos o ‘movimento’ da ocupação do RU - e mais um episódio na luta contra as ditaduras latino-americanas.
Esse combate nós havíamos vencido!
As ditaduras no Brasil e na Argentina durariam ainda mais alguns penosos anos, mas também acabariam derrotadas pela força organizada e resistente do povo. (Júlio Garcia)
*Postado originalmente neste blog em junho de 2007.