Por Jeferson Miola*
Hoje é possível certificar-se, com base em documentos e fatos conhecidos, o poder oculto do Partido Militar por trás dos acontecimentos precedentes que desembocaram na eleição do Bolsonaro em outubro de 2018. A principal controvérsia ainda remanescente é acerca da exata genealogia desta interferência ilegal e clandestina dos generais na política.
O conceito de Partido Militar, corriqueiro no debate público, está analisado de modo sistemático por Marcelo Pimentel Jorge de Souza, coronel da reserva do Exército [turma AMAN/1987] no texto que integra o livro “Os militares e a crise brasileira” organizado por João Roberto Martins Filho.
Pimentel destaca a politização das Forças Armadas e analisa que, embora aos olhos do senso comum Bolsonaro pareça o “‘agente’ ativo do processo – central, catalizador, condutor e gerente”, na realidade o papel dele, Bolsonaro, mesmo sendo presidente, “não é de condutor, controlador nem gerente do processo” [pág. 127].
Bolsonaro, em suma, é consequência, e não causa, do governo militar comandado pelo Partido Militar. É importante sublinhar isso: este é um governo militar, não um governo com militares.
E no governo, Bolsonaro é apenas um agente, e não o agente principal. Ele pode, inclusive, ser descartado e ejetado do cargo por força de conveniências ou da “perda de utilidade” para o Partido Militar.
Pimentel explica que o comando deste processo está em outro lugar. Ele destaca “a existência, ainda que ‘invisível a olho nu’, de um forte, consistente, coeso e cada vez mais poderoso sustentáculo, similar a um grupo político de natureza hegemônica: o ‘partido militar’”.
Ainda que seja “invisível a olho nu” e não possua a forma-partido institucional, o Partido Militar “que baliza o fenômeno da politização dos militares apresenta praticamente os mesmos elementos de um partido político tradicional: memória histórica e vocação institucional; base ideológica; pautas de interesse coletivo e corporativo específico; direção ‘partidária’ encarregada da distribuição de poder; controle do governo em direção, sentido e intensidade; quadros ‘partidários’ – formação de lideranças; e base eleitoral e militante” [pág. 128].
Villas Bôas, o “Pinochet brasileiro” que conspirou para derrubar a presidente Dilma, deixou claro que a atual geração de comandantes do Exército se estrutura, se organiza e atua como uma facção partidária conservadora – o Partido Militar, mencionado por Pimentel.
Em termos programáticos, o Partido Militar [1] preserva as referências da guerra fria, do inimigo interno, do anticomunismo – hoje antipetismo, anti-Lula e anti-esquerda, anti-“marxismo cultural” etc –; e, [2] no campo econômico aderiu ao ultraliberalismo, como decorrência de anos a fio de adestramento pelas cartilhas da FGV nas escolas militares.
Lula foi um prisioneiro de guerra dos generais. Eles exerceram muitas formas – a maioria ocultas – de pressão e ameaçaram o STF para aprisionar o ex-presidente na Guantánamo de Curitiba. Precisaram manter Lula como refém para tomarem o poder com o propósito de executar o mais devastador plano da oligarquia de saqueio e pilhagem do Brasil.
A volta do Lula ao centro da política nacional desorganizou a lógica política geral mas, principalmente, abalou o projeto de poder de longo prazo do Partido Militar. Os dirigentes ficaram baratinados, pois não contavam que a tutela sobre o STF falharia e que Lula recuperaria seus direitos políticos para disputar a eleição de 2022.
No plano simbólico os efeitos foram instantâneos. Subitamente os ridículos generais aderiram aos protocolos sanitários da OMS, passaram a perfilar usando máscaras e, no desespero, se dedicaram a fabricar previsões [nenhuma confiável] de prazos para imunização da população.
No plano político, devido à “força gravitacional” exercida por Lula, viram falhar os “dispositivos terceirizados” que até então lhes permitiam atuar em modo clandestino e secreto, como um poder oculto que comanda, manipula e maneja atores e instituições e, desse modo, concretiza seus objetivos sem aparecer no cenário.
Por isso os generais se obrigaram a “sair da toca” e se obrigaram a assumir, aberta e francamente, o protagonismo político-partidário que na realidade já desempenham há muito tempo, no marco de uma atuação golpista, conspirativa, ilegal e inconstitucional.
É interessante notar a movimentação dos principais dirigentes do Partido Militar nesta conjuntura, sobretudo nas redes sociais e imprensa [um parêntesis: em qual país do mundo generais e comandantes atuam como “influenciadores digitais” usando as patentes militares]?
Eles fazem aproximações sucessivas, empregam táticas diversionistas e de dissimulação, “plantam” matérias com jornalistas “amigos” ou ingênuos e lançam balões de ensaio para testar a reação do sistema político e da sociedade.
Não é o propósito, neste artigo, catalogar e analisar cada movimento dos generais nestas 3 últimas semanas de vertiginoso dinamismo político. Mas basta uma rápida pesquisa das entrevistas e matérias plantadas com Santos Cruz e dos posts de twitter dos generais Santos Cruz, Paulo Chagas e Brito, assim como a leitura do furibundo artigo do general Etchegoyen no site do Clube Militar.
Inconformados com a nova realidade, eles se manifestam como os senhores e donos dos destinos da Nação, e se permitem destilar toda sorte de vulgaridades contra Lula, o PT, a esquerda e, também, contra o sistema legal, o Estado de Direito e a Suprema Corte do país. Em democracias sólidas e com Forças Armadas profissionais, práticas deste estilo levariam seus autores a julgamento, condenação, perda de patentes da carreira e prisão.
Com a entrada na política de modo direto e sem disfarces, os generais passaram recibo de que conspiraram e envolveram as Forças Armadas na política pelo menos durante os últimos 10 anos. Ou alguém acredita na miragem [para citar expressão do rancoroso Etchegoyen] de que o Partido Militar começou a ser organizado somente agora e que, como num passe de mágica, surge oferecendo “grandes” quadros políticos e um programa político para “salvar” o país?
O poder civil deveria convidar o Partido Militar a não só se retirar da política, onde causaram o maior genocídio da história sob a condução de um general da ativa do Exército, como a voltarem aos quartéis, de onde nunca deveriam ter saído para envolverem as Forças Armadas em assuntos que não dizem respeito a eles.
A volta do Lula à cena política tirou os generais da toca e pôs em evidência aquilo que não se via nas aparências, mas que estava na essência da catástrofe vivida no Brasil: a existência subterrânea do Partido Militar, que é incompatível com o Estado de Direito e com a democracia.
*Fonte: Blog do Jeferson Miola