"É preciso constatar duas lacunas essenciais. A principal delas é a não responsabilização dos comandos das Forças Armadas. A outra lacuna diz respeito à não tipificação do crime de genocídio", escreve Jeferson Miola
“Guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militares nos quartéis, e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa. E foi isso que, lamentavelmente, parece ter acontecido” - Relator Renan Calheiros, na sessão inaugural da CPI, 27/4/2021
Por Jeferson Miola*
É a primeira vez que um presidente da República é indiciado por crimes contra a humanidade, por crimes de responsabilidade e por outros 8 tipos penais suficientes para condenar Bolsonaro ao enjaulamento por 30 anos – a pena máxima permitida no Brasil – nos tribunais nacionais e internacionais.
Não é trivial uma CPI pedir a responsabilização de ministros e ex-ministros de Estado, agentes públicos, deputados, senadores, governador e secretário de Estado, dirigentes partidários, médicos, militares, policiais, diplomatas e empresários por crimes variados.
O relatório da CPI que pede o indiciamento de Bolsonaro e 79 bolsonaristas não é uma mera peça de propaganda e instrumento de luta política. Está ancorado em robustas provas documentais, factuais e testemunhais.
A prova mais potente e convincente é o morticínio programado de cerca de 400 mil brasileiros e brasileiras que, de acordo com epidemiologistas, poderiam ter suas vidas preservadas se os indiciados pela CPI não tivessem agido criminosamente – ou seja, do modo culposo e/ou doloso como agiram.
Só pela responsabilização civil e criminal dos integrantes desta engrenagem macabra a CPI da COVID já terá valido a pena.
A função humanitária da CPI, entretanto, tem um alcance ainda maior. A Comissão conseguiu interromper a tendência crescente e a velocidade de crescimento da hecatombe humana que poderia ultrapassar a casa do milhão de vítimas humanas do desatino governamental.
No curso da investigação, a CPI estancou o esquema corrupto de propina da infantaria do general Pazuello no Ministério da Saúde, obrigou o governo militar a trabalhar pela viabilização das vacinas e constrangeu a continuidade do funcionamento da máquina de horror inspirada nos experimentos nazistas de Auschwitz.
Em outra frente, a CPI desnudou a maquinaria que funcionava no porão do Palácio do Planalto articulando agentes do gabinete do ódio, propagadores de teses negacionistas, charlatães religiosos, dirigentes do Conselho Federal de Medicina, acadêmicos, clínicas médicas, políticos e empresários.
Ao lado disso, porém, é preciso constatar duas lacunas essenciais da Comissão Parlamentar.
A principal delas é a não responsabilização dos comandos das Forças Armadas, em especial do Exército, que [1] teve papel central na gestão desastrosa, irresponsável e criminosa da pandemia por meio de um general da ativa designado pelo Comandante do Exército, e cujo laboratório [2] produziu industrialmente cloroquina e disseminou a distribuição desta droga comprovadamente ineficaz nas comunidades indígenas.
O saldo líquido desta guerra perdida pelo partido militar em 18 meses é maior que as baixas de 10 guerras do Paraguai, que durou 6 anos.
Ao que parece, deu certo a estratégia do partido dos generais para se safar da CPI. Como já dissemos, a CPI acertou nos alvos secundário e terciário, que são o presidente Jair Bolsonaro e o general Eduardo Pazuello, mas tangenciou o alvo principal da cadeia de responsabilidades pelo genocídio de mais de 600 mil brasileiros e brasileiras, que é o partido dos generais.
A outra lacuna diz respeito à não tipificação do crime de genocídio. Se em relação aos cerca de 400 mil “homicídios evitáveis” seria juridicamente problemático responsabilizar Bolsonaro por genocídio, em relação aos povos indígenas esta tipificação seria totalmente aplicável.
A Convenção da ONU de 1948, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro em 1956 por meio da Lei nº 2.889, caracteriza genocídio como “a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”.
O relatório da CPI não é nenhuma garantia de punição, justiça e restauração democrática, principalmente quando se sabe que no meio do caminho da justiça e da democracia do Brasil têm pedras que atendem pelos nomes de Augusto Aras e Arthur Lira, o vassalo do banqueiro André Esteves.
O relatório da CPI, neste sentido, não encerra o ciclo de terror do país, mas abre uma etapa nova da luta democrática e de combate à ameaça fascista-militar. Os senadores e as senadoras de diferentes matizes ideológicas que na CPI se postaram ao lado da democracia, da humanidade e da ciência merecem aplausos.
*Via Brasil247
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