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Deborah Duprat, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, e Domingos
Sávio Dresch da Silveira, Procurador Federal dos Direitos do Cidadão
Substituto. (Foto: Joana Berwanger/Sul21) |
Da Redação (*)
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e o Ministério Público
Federal condenaram nesta terça-feira (26) a intenção do governo Jair
Bolsonaro de “comemorar” o aniversário de 55 anos do golpe de Estado de
1964 que derrubou o governo constitucional de João Goulart e instalou
uma ditadura no país. Em nota, a PFDC e o MPF afirmam que é
“incompatível com o Estado Democrático de Direito festejar um golpe de
Estado e um regime que adotou políticas de violações sistemáticas aos
direitos humanos e cometeu crimes internacionais”.
A nota é assinada por Deborah Duprat, Procuradora Federal dos
Direitos do Cidadão, Domingos Sávio Dresch da Silveira, Procurador
Federal dos Direitos do Cidadão Substituto, Marlon Weichert, Procurador
Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto, Eugênia Augusta Gonzaga
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Adjunta.
Veja abaixo a íntegra da nota
A Presidência da República recomendou ao Ministério da Defesa que
o aniversário de 55 anos do golpe de Estado de 1964 seja comemorado.
Embora o verbo comemorar tenha como um significado possível o fato de se
trazer à memória a lembrança de um acontecimento, inclusive para
criticá-lo, manifestações anteriores do atual presidente da República
indicam que o sentido da comemoração pretendida refere-se à ideia de
festejar a derrubada do governo de João Goulart em 1º de abril de 1964 e
a instauração de uma ditadura militar.
Em se confirmando essa interpretação, o ato se reveste de enorme
gravidade constitucional, pois representa a defesa do desrespeito ao
Estado Democrático de Direito. É preciso lembrar que, em 1964, vigorava a
Constituição de 1946, a qual previa eleições diretas para presidente da
República. O mandato do então presidente João Goulart seguia seu curso
normal, após a renúncia de Jânio Quadros e a decisão popular, via
plebiscito, de não dar seguimento à experiência parlamentarista.
Ainda que sujeito a contestações e imerso em crises, não tão
raras na dinâmica política brasileira e em outros Estados Democráticos
de Direito, tratava-se de um governo legítimo constitucionalmente.
O golpe de Estado de 1964, sem nenhuma possibilidade de dúvida ou
de revisionismo histórico, foi um rompimento violento e antidemocrático
da ordem constitucional. Se repetida nos tempos atuais, a conduta das
forças militares e civis que promoveram o golpe seria caracterizada como
o crime inafiançável e imprescritível de atentado contra a ordem
constitucional e o Estado Democrático previsto no artigo 5°, inciso
XLIV, da Constituição de 1988. O apoio de um presidente da República ou
altas autoridades seria, também, crime de responsabilidade (artigo 85 da
Constituição, e Lei n° 1.079, de 1950). As alegadas motivações do golpe
– de acirrada disputa narrativa – são absolutamente irrelevantes para
justificar o movimento de derrubada inconstitucional de um governo
democrático, em qualquer hipótese e contexto.
Não bastasse a derrubada inconstitucional, violenta e
antidemocrática de um governo, o golpe de Estado de 1964 deu origem a um
regime de restrição a direitos fundamentais e de repressão violenta e
sistemática à dissidência política, a movimentos sociais e a diversos
segmentos, tais como povos indígenas e camponeses.
Transcorridos 34 anos do fim da ditadura, diversas investigações e
pesquisas sobre o período foram realizadas. A mais importante de todas
foi a conduzida pela Comissão Nacional da Verdade – CNV, que funcionou
no período de 2012 a 2014. A CNV foi instituída por lei e seu relatório
representa a versão oficial do Estado brasileiro sobre os
acontecimentos. Juridicamente, nenhuma autoridade pública, sem
fundamentos sólidos e transparentes, pode investir contra as conclusões
da CNV, dado o seu caráter oficial.
A CNV confirmou que o Estado ditatorial brasileiro praticou
graves violações aos direitos humanos que se qualificam como crimes
contra a humanidade. A igual conclusão chegou a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, ao julgar o caso Vladimir Herzog, em 2018. Também a
Procuradoria Geral da República assim entende, conforme manifestação na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 320 e outros
procedimentos em trâmite no Supremo Tribunal Federal.
De fato, os órgãos de repressão da ditadura assassinaram ou
desapareceram com 434 suspeitos de dissidência política e com mais de 8
mil indígenas. Estima-se que entre 30 e 50 mil pessoas foram presas
ilicitamente e torturadas. Esses crimes bárbaros (execução sumária,
desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas,
torturas e violações sexuais) foram perpetrados de modo sistemático e
como meio de perseguição social. Não foram excessos ou abusos cometidos
por alguns insubordinados, mas sim uma política de governo, decidida nos
mais altos escalões militares, inclusive com a participação dos
presidentes da República.
A gravidade desses fatos é de clareza solar. Mais uma vez, é
importante enfatizar que, se fossem cometidos atualmente, receberiam
grave reprimenda judicial, inclusive por parte do Tribunal Penal
Internacional, criado pelo Estatuto de Roma em 1998 e ratificado pelo
Brasil em 2002. Também à luz do direito penal internacional, os
ditadores brasileiros cometeram crimes contra a humanidade.
Essa Corte, porém, não pode julgar as autoridades brasileiras pelos crimes da ditadura, porque sua competência é para fatos posteriores à sua criação.
Festejar a ditadura é, portanto, festejar um regime
inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos
direitos humanos. Essa iniciativa soa como apologia à prática de
atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem
prejuízo das repercussões jurídicas.
Aliás, utilizar a estrutura pública para defender e celebrar
crimes constitucionais e internacionais atenta contra os mais básicos
princípios da administração pública, o que pode caracterizar ato de
improbidade administrativa, nos termos do artigo 11 da Lei n° 8.429, de
1992.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC, órgão do
Ministério Público Federal, confia que as Forças Armadas e demais
autoridades militares e civis seguirão firmes no cumprimento de seu
papéis constitucionais e com o compromisso de reforçar o Estado
Democrático de Direito no Brasil, o que seria incompatível com a
celebração de um golpe de Estado e de um regime marcado por gravíssimas
violações aos direitos humanos.