Kennedy se revolta: "Brasil enfrenta um vírus e um verme"
Jair Bolsonaro mais uma vez abusou da falta de sensibilidade - para dizer o mínimo - e apelou para uma foto do presidente Lula indo ao velório de seu neto Arthur, de sete anos, para provocar o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad.
Na noite de segunda-feira 7/IV, Haddad escreveu no Twitter, em referência à "fritura" do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, por Bolsonaro: "nunca tinha visto um presidente se colocar em situação tão humilhante".
Na tarde desta terça, Bolsonaro decidiu rebater Haddad e, para isso, postou uma imagem de Lula a caminho do velório do neto, em 2019, escoltado pela Polícia Federal.
Desumano usar a imagem do dia em que Lula foi ao velório do neto. Monstro moral, genocida, incapaz, fraco. Bolsonaro se apequena dia após dia, tuíte após tuíte. Brasil enfrenta o vírus e o verme
E explicava que, embora resistindo à determinação de colocar a tal hidroxicoriquina nos protocolos médicos de atendimento, ele cedeu no principal: a dureza do isolamento social que é a única forma comprovada de evitar uma expansão maior e mais rápida da doença e, por isso, evitar no possível o caos hospitalar.
Cede, portanto, no que é a prioridade para Bolsonaro e para empresários sem escrúpulos com a vida humana.
Hoje, no G1, o jornalista Helio Gurovitz assina um longo e detalhado artigo em que explica porque sustenta a mesma visão.
A ele, apenas acrescento a viva impressão que tenho de que espera-se apenas a explosão dos casos – mascarada até agora pela falta crônica de testes – vai acabar por afastá-lo do cargo, tendo na conta milhares de cadáveres – para a entrada triunfante dos charlatães da cura milagrosa. (Fernando Brito*)
O ministro Luiz Henrique Mandetta vinha sendo saudado como oásis de racionalidade e determinação no combate ao novo coronavírus, fonte de luzes num governo contaminado pelas trevas, pelo desprezo à ciência, onde o próprio presidente, chamado de “cético-chefe” pela imprensa internacional, se tornou um risco sanitário. Pois ontem Mandetta cometeu o maior erro de em sua gestão à frente da pasta da Saúde – um erro que deverá custar a vida de milhares de brasileiros.
Como resultado de um acordo político costurado pelos militares para garantir sua permanência no cargo, Mandetta aceitou relaxar as diretrizes para o distanciamento social no país. Ao final de uma reunião tensa que sucedeu os boatos de demissão, afirmou que o governo “se reposiciona” para enfrentar o problema.
Durante a tarde, o ministério baixou normas em que estabelece três níveis de isolamento e aceita, nas cidades com mais da metade do atendimento médico disponível, o que chama de “distanciamento social seletivo”, situação em que apenas idosos e demais grupos de risco são proibidos de circular livremente. Pode ter sido uma medida eficaz para atender demandas políticas, mas a ciência estava ausente da reunião. O resultado deverá ser dramático.
Todas as tentativas de adotar estratégias do tipo no mundo deram errado. Itália e Estados Unidos desprezaram o avanço da Covid-19 quando havia poucos casos, apenas para ser engolfados por um crescimento incontrolável poucos dias depois. Depois de ensaiar um modelo similar ao proposto pelo governo brasileiro, o Reino Unido voltou atrás e a partiu para o isolamento draconiano, o “lockdown”.
A Holanda, que apostava numa postura mais permissiva de contágio para tentar tornar parte da população imune e deter a circulação do vírus, se viu obrigada a proibir eventos e fechar escolas e restaurantes até o final do mês ante a escalada nos casos. “Fiquem em casa tanto quanto possível”, afirmou o premiê Mark Rutte.
O Japão, que também resistiu a medidas mais drásticas, declarou estado de emergência para impôr o isolamento radical em seis regiões metropolitanas. Mesmo a Suécia, que ainda evita manter os cidadãos em casa, passou a adotar normas duríssimas de distanciamento, impraticáveis em países de cultura menos glacial.
O crescimento exponencial do início da curva epidêmica não perdoa atitudes lenientes. Números aparentemente baixos no início se multiplicam rapidamente e, em questão de dias, bastam para abarrotar hospitais e UTIs, como se viu em Milão e em toda a região da Lombardia, a mais atingida pela epidemia na Itália.
É natural que a resposta ao vírus tenha de levar em conta condições locais e que nem toda região de um país continental como o Brasil deva estar sujeita às mesmas regras. Mas o critério adotado pelo Ministério da Saúde é absurdo, para não dizer criminoso. Várias outras variáveis teriam de ser levadas em conta para garantir a preservação de vidas nas regiões menos atingidas.
A primeira, e mais óbvia, é a restrição a viagens. Enquanto houver circulação livre, um único infectado vindo das áreas mais críticas pode criar um foco com milhares de casos, como aconteceu em cultos religiosos na Coreia do Sul e na França. Para conter o vírus em Wuhan, o epicentro da pandemia, o governo chinês passou a monitorar todas as entradas e saídas da cidade e da província de Hubei. Em postos de estrada e estações de trem de todo o país, termômetros capazes de detectar sinais de febre à distância se tornaram ubíquos.
A Covid-19 se espalhou de uma única cidade para toda a China em apenas 30 dias. No final de janeiro, depois de muito vacilar, o governo chinês decretou enfim o “lockdown” em Wuhan e noutras 15 cidades. Depois estendeu medidas de isolamento a todas as províncias. Nem todas foram submetidas ao mesmo rigor, mas passou a haver monitoramento rígido do transporte, para frear a contaminação.
A segunda medida a adotar, e a mais importante, é ampliar e disseminar a capacidade de testes. O objetivo é isolar quem estiver contaminado e rastrear todos os seus contatos. Na China, isso foi feito em todas as cidades que não estavam sujeitas às mesmas restrições que os principais focos da pandemia (leia mais aqui).
Na Itália, foi a ampliação da capacidade de testes que garantiu o perfil menos devastador da epidemia no Vêneto do que na vizinha Lombardia. Mesmo sem atingir a sofisticação de rastramento da Coreia do Sul ou de Cingapura, os venezianos trataram de identificar a maior quantidade possível de casos, mesmo aqueles com sintomas leves, e de isolá-los, além de rastrear todos os contatos. Aplicaram, até o final de março, quase 2 mil testes para cada 100 mil habitantes, o dobro da Lombardia. A letalidade (mortes por casos confirmados) ficou abaixo de 5%, ante quase 16% na região vizinha.
O relaxamento do isolamento social, sem monitoramento dos transportes nem uma capacidade de testes robusta, não passa de uma quimera. A Covid-19 é uma doença insidiosa, que pode ser transmitida por quem aparentemente não apresenta sintoma nenhum. A infecção pode levar até duas semanas para manifestar os primeiros sintomas. Deter o vírus significa saber quem são esses pacientes assintomáticos e isolá-los até da própria família.
O Brasil já tem sido leniente na aplicação das normas de distanciamento social impostas até agora. Um levantamento com base na localização de celulares sugere que elas têm sido cumpridas por pouco mais de 50% da população. O Reino Unido, que mal começa a deter o vírus, reduziu por volta de 73% dos contatos, de acordo com um estudo recente. Nas regiões da China que obtiveram êxito para barrar a disseminação, tal redução foi superior a 85%.
O desafio por aqui, portanto, ainda é enorme. Em especial, em favelas ou regiões de maior adensamento dos grandes centros urbanos – para cuja população precisará haver garantia de sustento durante um período que se anuncia longo.
Ao ignorar a conclusão dos principais estudos científicos e as práticas que deram resultado nos países mais atingidos, tudo o que o governo brasileiro conseguirá é ampliar a disseminação do vírus, a pressão sobre os sistemas de saúde estaduais e o número de mortos. Quando – e se – for reparar o erro, talvez já seja tarde demais.
Quando passar o vendaval, e poderá ser em breve, gestos dessa natureza serão contados como o caso do procurador que empenhou sua biografia em troca do fogo fátuo de um poder que acabará na próxima esquina da história.
Por Luis Nassif*
O vice-procurador-geral eleitoral Renato Brill de Goés não é um bolsominion típico. Pelo contrário. Até a semana passada era um procurador considerado, com boas posições em direitos humanos. Virou Bolsonaro.
O Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta é um médico racional, que tem dado demonstrações de maturidade e responsabilidade pública excepcionais. E era Bolsonaro.
O que leva pessoas desse nível a aderirem ao que de pior a política brasileira apresentou em todos os tempos? A adesão a Bolsonaro há muito deixou de ser uma opção política para se tornar uma escolha moral.
O que acontece com o caráter de pessoas como Brill de Góes, para ter a presunção de acabar com um partido político que representa várias dezenas de milhões de eleitores brasileiros? Como pode alguém que se considera minimamente racional e conhecedor de princípios jurídicos e de direitos humanos, proceder a essa confusão entre pessoas e a instituição do partido a ponto de ter essa pretensão de varrer do mapa político o maior partido brasileiro?
Seria vontade de agradar o chefe? Seria o fato de querer impor autocraticamente seu antipetismo sobre 47 milhões de eleitores? Seria o fato de que suas convicções se adaptam às circunstâncias da sua carreira profissional? Vale tanto a pena assim manchar sua biografia com um gesto dessa natureza?
Mandetta fez o caminho inverso. Chegou ao posto de Ministro por sua adesão ao bolsonarismo. No poder, lembra o personagem de Vitório de Sicca, no filme “De crápula a herói”. Percebeu a relevância do cargo, a responsabilidade pública e passou a ter um papel central no combate à doença, indo contra o chefe. Vai ser demitido ou não, pouco importa. Em um país de oportunismos, de pusilanimidade de homens públicos, Mandetta inscreveu-se na história.
Por outro lado, quantos procuradores/as exemplares, de biografia irrepreensível, acabaram jogando fora história, imagem e reputação para agradar ao Deus do momento, fosse Bolsonaro ou a mídia? Os exemplos estão aí, à vista de Brill de Goes. Na era das redes sociais, o julgamento da história não precisa aguardar décadas para se realizar.
Quando passar o vendaval, e poderá ser em breve, gestos dessa natureza serão contados como o caso do procurador que empenhou sua biografia em troca do fogo fátuo de um poder que acabará na próxima esquina da história.
O Ministério Público pode querer calar a voz da oposição, atendendo aos desejos do governo, só isso justifica a admissão de um pedido esdrúxulo e ilegal como este.
É ultrajante e fantasiosa a admissibilidade pelo vice-procurador-geral eleitoral Renato Brill de Goés de pedido para cancelamento do registro do Partido dos Trabalhadores junto à Justiça Eleitoral.
Não há provas e nem indícios de que o PT tenha recebido recursos oriundos do exterior, o que nunca aconteceu. A decisão é arbitrária e política, sem amparo em fatos ou na realidade.
O pretexto usado pelo MP Eleitoral é irreal. Mais uma vez temos o lawfare — o uso do direito e do sistema jurídico contra o inimigo — para perseguir os adversários do regime e do atual presidente.
Na história da República, somente em períodos de arbítrio, como nos anos 40 e 60, em que ditaduras calaram a voz de opositores, partidos políticos tiveram seus registros cassados, a exemplo do Partido Comunista do Brasil.
O PT tem 40 anos de história em defesa da democracia e do povo brasileiro, e uma longa tradição em luta pelos direitos sociais no país, contra o abuso do poder político e econômico e por uma sociedade menos desigual.
O Ministério Público pode querer calar a voz da oposição, atendendo aos desejos do governo, só isso justifica a admissão de um pedido esdrúxulo e ilegal como este.
Medida pode criar novos focos de disseminação da Covid-19
O presidente [sic] Jair Bolsonaro estuda uma nova medida provisória para flexibilizar as normas de quarentena em cidades pequenas e médias com baixos índices de coronavírus. A informação é dereportagem de Thais Arbex, no Globo.
Bolsonaro, que desde o início da crise sanitária se manifesta contra as medidas de isolamento impostas por governos municipais e estaduais - e defendidas pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde - acredita que a tal "flexibilização" poderá ser determinante para a retomada das atividades econômicas.
A equipe do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, entretanto, defende que qualquer tipo de "afrouxamento" das regras de isolamento social só poderá acontecer a partir do momento em que o sistema de saúde pública estiver bem estruturado para atender qualquer "pico" nos casos de Covid-19.
Segundo a reportagem, entretanto, até mesmo a definição de quais cidades poderiam passar pela "flexibilização" das regras é uma tarefa difícil: "Existem no país, por exemplo, muitas cidades-dormitórios que não concentram casos da Covid-19, mas têm potencial para se tornarem centros de disseminação da doença caso seus moradores sejam liberados para a retomada das atividades. O vai e vem de trabalhadores, nesses municípios, poderia dar impulso à circulação do vírus", diz o texto.
Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, revelou a Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre a briga que teve com Jair Bolsonaro por telefone, segundo o jornalista Manoel Schlindwein, da Veja
247* - Em jantar que teve com os presidentes do Senado e da Câmara de Deputados, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, na noite de quinta-feira, 2, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, revelou aos parlamentares o tenso diálogo que teve com Jair Bolsonaro por telefone. As informações são de Manoel Schlindwein, na VEJA.
Durante a ligação, Bolsonaro teria pedido a Mandetta que renunciasse para deixar o governo. O ministro da Saúde rebateu: “o senhor que me demita, presidente”. O médico ainda falou para ele que se responsabilizasse sozinho pelas mortes causadas pelo coronavírus, que já infectou mais de 8 mil brasileiros e matou 343.
O jornalista escreve que, “apesar da tensa discussão, Mandetta trabalha normalmente nesta sexta [3] e já participou de uma série de reuniões”.
No jantar com os chefes do Legislativo, Mandetta disse que a situação com Bolsonaro era “insustentável” por estar sendo boicotado e atacado pelo presidente e seus aliados. Maia e Alcolumbre, entretanto, teriam-no pedido para se manter “o máximo possível” no cargo.
Políticos deixam diferenças de lado no combate ao coronavírus
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), usou uma fala do ex-presidente Lula (PT) para criticar as ações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no combate ao coronavírus.
No Twitter, Lula elogiou governadores e prefeitos. Doria respondeu:
Temos muitas diferenças. Mas agora não é hora de expor discordâncias. O vírus não escolhe ideologia nem partidos. O momento é de foco, serenidade e trabalho para ajudar a salvar o Brasil e os brasileiros.
A historiadora Dulce Pandolfi deu, em 2013, um depoimento estarrecedor à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro sobre as torturas que sofreu na ditadura. Dulce, que era da Aliança Libertadora Nacional, ALN, tinha 21 anos quando foi presa em 1970.
Durante três meses no DOI CODI, sofreu todo tipo de sevícias. O DCM* reproduz trechos de seu relato (a íntegra está aqui):
Por acreditar que no Brasil de hoje a busca pelo “direito à verdade e à memória” é condição essencial para nos libertarmos de um passado que não podemos esquecer, aceitei o convite da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro para fazer hoje, aqui, esse depoimento.
Mesmo sem nenhum mandato, quero falar em nome dos presos, torturados, assassinados e desaparecidos pela ditadura militar que vigorou em nosso país entre 1964 e 1985.
Como historiadora, sei que a memória não diz respeito apenas ao passado. Ela é presente e é futuro. Os testemunhos que estão sendo dados à Comissão da Verdade, embora sobre o passado, dizem respeito ao presente e apontam para o futuro, por isto mesmo espero que ajudem a construir um Brasil mais justo e solidário.
Sei também que da memória – sempre seletiva – , fazem parte o silêncio e o esquecimento. Por isso, nessas minhas fortes lembranças, permeadas por ruídos, odores, cores e dores, estarão presentes ausências e esquecimentos.
Na noite do dia 20 de agosto de 1970, no momento em que entrei no quartel da Polícia do Exército situado na Rua Barão de Mesquita, número 425, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, ouvi uma frase que até hoje ecoa forte em meus ouvidos: “Aqui não existe Deus, nem Pátria, nem Família. Só existimos nós e você”.
Hoje, passados mais de 40 anos, penso no efeito que aquela frase produziu em mim. Com 21 anos de idade, cheia de certezas e transbordando de paixões, eu não queria morrer.
Embora totalmente acuada e literalmente apavorada, aquela frase não deixava a menor dívida sobre algo que eu já sabia, mas que naquele momento ganhou força e concretude. Não havia comunicação ou negociação possível entre aqueles dois mundos: o meu e o deles. (…)
Normalmente, os torturadores, embora quase todos militares, andavam à paisana. Os fardados cobriam com um esparadrapo o nome gravado em um dos bolsos do uniforme. Cabia aos cabos e soldados cuidar da infraestrutura.
Eram eles que fechavam e abriam as celas, nos levavam para os interrogatórios, ou melhor, para as sessões de tortura, faziam a ronda noturna, levavam as nossas refeições.
Ali não havia banho de sol, visita familiar, conversa com advogado. Nenhum contato com o mundo lá fora. Naquela fase, éramos presos clandestinos. Só saíamos das celas para os interrogatórios, de olhos vendados, sempre com um capuz preto na cabeça. (…)
Durante os mais de três meses que fiquei no DOI CODI, fui submetida, em diversos momentos, a diversos tipos de tortura. Algumas mais simples, como socos e pontapés. Outras mais grotescas, como ter um jacaré andando sobre meu corpo nu.
Recebi muito choque elétrico e fiquei muito tempo pendurada no chamado “pau de arara”: os pés e os pulsos amarrados em uma barra de ferro e a barra de ferro colocada no alto, numa espécie de cavalete.
Um dos requintes era nos pendurar no pau de arara, jogar água gelada e ficar dando choque elétrico nas diversas partes do corpo molhado. O contato da água com o ferro potencializava a descarga elétrica.
Embora essa tenha sido a tortura mais frequente havia uma alternância de técnicas. Uma delas, por exemplo, era o que eles chamavam de “afogamento”.
Amarrada numa cadeira, de olhos vendados, tentavam me sufocar com um pano ou algodão embebido em algo de cheiro muito forte, que parecia ser amônia. (…)
No dia 20 de outubro, dois meses depois da minha prisão e já dividindo a cela com outras presas, servi de cobaia para uma aula de tortura.
O professor, diante dos seus alunos, fazia demonstrações com o meu corpo. Era uma espécie de aula prática, com algumas dicas teóricas. Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no tal do pau de arara, ouvi o professor dizer: “essa é a técnica mais eficaz”. Acho que o professor tinha razão.
Como comecei a passar mal, a aula foi interrompida e fui levada para a cela. Alguns minutos depois, vários oficiais entraram na cela e pediram para o médico medir minha pressão.
As meninas gritavam, imploravam, tentando, em vão, impedir que a aula continuasse. A resposta do médico Amilcar Lobo, diante dos torturadores e de todas nós, foi: “ela ainda aguenta”. E, de fato, a aula continuou. (…)
Eu acuso todos os torturadores, civis e militares, inclusive aqueles que diziam e continuam dizendo que estavam apenas cumprindo ordens dos seus superiores.
Eu acuso os altos oficiais e comandantes do Exército Brasileiro que, em visitas oficiais ao DOI CODI, entravam nas nossas celas e faziam gracejos com as nossas torturas. Em uma dessas visitas, um desses oficiais mandou que seu acompanhante, um cão pastor, lambesse minhas feridas.
Eu acuso quem, durante a minha primeira sessão de tortura, me deu uma injeção na veia, dizendo ser o tal “soro da verdade”.
Eu acuso o major da Polícia Militar Riscala Corbaje, conhecido como doutor Nagib, que ao perceber que o tal soro da verdade não havia produzido o efeito esperado, me levou para uma pequena sala, me deitou no chão, subiu nas minhas costas, começou a pisotear e a me bater com um cassetete, dizendo, aos gritos, que ia me socar até a morte. Seu descontrole foi tamanho e seus gritos tão estridentes que os outros torturadores entraram na sala e o arrancaram de cima de mim.
Eu acuso o cabo Gil, um dos responsáveis pela infraestrutura do quartel da PE. Seu sadismo era sem fim. Lembro até hoje do barulho forte das chaves quando ele abria a porta da nossa cela com o capuz na mão. Propositalmente, ele demorava um tempo e, como se estivesse fazendo um sorteio, dizia: “acho que agora é sua vez”. Descer as escadas de olhos vendados, guiadas por ele, era um horror. Sempre inventava mais um degrau ou colocava o pé para que nós tropeçássemos. (…)
Eu acuso os ex-presidentes da República Humberto Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo. A despeito das divergências entre eles e das diferentes conjunturas em que chefiaram o país, todos, sem exceção, foram responsáveis e coniventes com a tortura.
Eu acuso, finalmente, o regime ditatorial implantado no Brasil em 1964, que fez da tortura uma política de Estado.