02 fevereiro 2020

Reformas sem compaixão e sem igualdade de trato: esta foi a vitória do governo Leite

Governador Eduardo Leite (PSDB). Foto: Guilherme Santos/Sul21
Tarso Genro (*)
“Informalidade cresce, contribuição para a Previdência tem pior nível em seis anos”. Esta notícia divulgada pela DW-Brasil (31.01), saiu na mesma data em que o Reino Unido formalizou os protocolos de saída da União Europeia, depois da espetacular vitória de Boris Johnson nas eleições parlamentares, que selaram a consolidação do que podemos chamar de “nacionalismo extremado dos países ricos”. É uma nova etapa da economia global, baseada em aspirações nacionais majoritárias, internamente, que  afetam -sem exceções ideológicas- todas as grandes economias do mundo. São aspirações que tecem uma agenda nacional que vem se mostrando majoritária e fácil de ser entendida pelos que sofreram, até hoje, os efeito mais excludentes do “globalismo.”  Na Índia, hoje tida pelo Governo do Brasil como modelo de desenvolvimento, 15 milhões de pessoas nascem – anualmente – nas ruas e morrem nas ruas, pois como se disse no Eclesiastes (3, 1-8) “Tudo neste mundo tem seu tempo:cada coisa tem sua ocasião.” Só que os Governos, num Estado democrático decente deveriam reduzir estas ocasiões, não aumentá-las governando para os muito poucos e abandonando pessoas ao relento e à fome.
Estas aspirações nacionais -através de formas específicas em cada país- adquirem força política global, seja através da simples brutalidade intervencionista de Trump ou da orientação reformista “para fora” -da Alemanha- que mantém internamente as principais proteções socialdemocratas ao mundo do trabalho. Seja pelo poder de imposição do interesses da China Popular perante o mercado mundial como detentora majoritária dos títulos do Tesouro Americano; seja pelo controle geopolítico que a Rússia detém, de fontes estratégicas de energia numa grande parte do Globo. A França -como estamos presenciando- é um pêndulo moral da ilustração, com um movimento espacial cada vez mais estreito, para poder voltar a frequentar um Clube que somente o General De Gaulle afrontou no pós-guerra.
A “informalidade” e a “falência da Previdência Pública”  – mencionadas na notícia da Deutsche Welle – são dois elementos fundamentais de poder que o capitalismo financeiro não abre mão de promover. Não é  um exagero dizer que, quem não compreende que estes dois elemento do poder político atual  -“poder” de esvaziar a regulação da força de trabalho, através do “precariado”  e “poder” de organizar as finanças do Estado, para conviver num novo regime de confiança com a especulação financeira- (quem não os compreende), dificilmente enfrentará este ciclo de reformas ultraliberais com possibilidade de revertê-lo. São reformas universais que constroem, metodicamente, um mundo mais perverso numa sequência de “guerras híbridas”, em um período em que os resquícios das promessas da luzes são submetidas ao crivo da escuridão das Bolsas de Valores.
São dois os motivos básicos, em que me escoro, para propor uma reflexão construtiva sobre o tema: 1. as reformas ultraliberais põem fim aos corporativismos fragmentários que existem no setor público, substituindo-os por um único -unificado e ágil-  macro-corporativismo do capital financeiro (a ele o Estado vai se devotar integralmente para “pagar a dívida”) –  agilizando, assim, a máquina pública e reduzindo o seus liames mais burocráticos, de forma a que ela se modernize para cumprir outras funções, já agora sem compatibilizar interesses de classe opostos, que ocorriam com renúncias minúsculas da acumulação privada, em benefício dos “desvalidos” e dos trabalhadores regulares, estes através do sistema protetivo social-democrata ou análogo; 2. as reformas ultraliberais instauram um “novo modo de vida”, pela radical fragmentação ética e produtiva do velho  mundo do trabalho, no qual fora instituído um modo de viver “conscientemente orientado” (mesmo que aderente ao sistema do capital), que reproduzia -pelas lutas operárias e lutas dos trabalhadores do setor público- uma “consciência mínima” de orientação” e pertencimento, que enfrentava as barganhas coletivas, entre as categorias profissionais e os seus patrões públicos e privados, muitas vezes com um sucesso estimulante pelo que vem do “coletivo”.
As reformas em curso, portanto, enfraquecem as “lutas de resistência” – como as chamam os dirigentes sindicais e dirigentes políticos de esquerda e progressistas – porque as vozes do clamor resistente não se reproduzem mais no interior de coletivos minimamente unificados, ou mesmo com uma “razão” existencial que parta de uma vida comum, como ocorria na época da ditadura militar. Pouco tem a ver os trabalhadores “autônomos”, que usam nos seus movimentos de entrega tração humana (ou mecânica), os intermitentes, diaristas, precários, terceirizados, os vendedores de esquina – todos concorrentes entre si – as lutas das mulheres, as lutas pelo direito de ser feliz com a própria condição sexual, as demandas do “patrões de si mesmos” no “pejotismo” desenfreado; a busca de mercado pelos agricultores pobres.
Todos têm pouco a ver com as classes trabalhadoras ainda com “carteira assinada” e com os trabalhadores estáveis do setor público, que (pasmem!), mesmo com a sua pobreza financeira majoritária são considerados “privilegiados”, pelos integrantes deste novo mundo do trabalho.
As reformas aprovadas pelo Governo Leite não foram só uma vitória (ainda que relativa) de um Governo local contra as corporações dos trabalhadores do setor público, mas foram também uma vitória de uma visão de Estado: de uma visão de  mundo, em favor de um tipo de sociedade que vem sendo pautada mundialmente e que, para se realizar na plenitude dos desejos dos credores da dívida pública, deve compatibilizar-se com a ideia fascista de controle social. Esta é uma tarefa meticulosamente cumprida pela mídia tradicional – embora a resistência de uma fração de jornalistas honestos e competentes – que se sustenta na disseminação da convicção que as reformas ultraliberais são válidas, independentemente de serem originárias dos golpes políticos, do nazifascismo ameaçador e do alongamento miliciano do poder de Estado.
Observem o grande movimento feito pelas mídias tradicionais e pelas redes controladas pelos golpistas, no processo de deposição da Presidenta Dilma, para que possamos prever como será o movimento das grandes mídias e dos empresários locais, a partir da aprovação das reformas do Governo Leite, para que possamos pensar – não apenas em atos de resistência- mas numa ofensiva política mais ampla contra o ultraliberalismo irmanado com o fascismo: primeiro bastava tirar o PT do Governo para o país volta a crescer; a seguir bastaria depor Dilma; depois -durante o processo eleitoral- não permitir que o PT voltasse através de Haddad; depois foi brandida a necessidade das reformas para que o crescimento florescesse; finalmente -agora- precisamos aguardar uma situação internacional mais favorável e o bom resultado do peleguismo sórdido perante o “trumpismo”.
Assim como Bolsonaro não é atacado pela mídia na essência fascista e violenta do seu Governo, numa generosidade midiática que só pode ser compreendida pelos seus compromissos explícitos com as reformas ultraliberais – desindustrializantes e subordinadas à jogatina internacional – o Governo Leite, apresentado como um governo de métodos empresariais de administração e ousado nas suas reformas “estruturais” (todas aliás, fortemente custeada pelos “de baixo” e de manutenção dos privilégios dos “de cima”) teve  e tem um apoio extraordinário do oligopólio da mídia: “Em três dias, Leite promove a maior reforma no setor público gaúcho” – como diz ZH deste fim de semana, manchete que tem o mesmo tom de celebração política das informações que este jornal circulou  – diga-se de passagem, por convicção, não por mentira gratuita – sobre o acordo Britto-Malan, que resolveria a questão da dívida do Estado.
O governo Sartori, no seu modesto jeito de pensar a política, disse que ia fazer o “dever de casa”, sem aludir precisamente o que era este “dever” e devolveu o Estado numa situação de crise pior do que qualquer Governo devolveu. Pelo que se presume desta manchete de ZH, o “dever de casa” agora está feito, mas como explicar que a dívida ficou maior e a adesão ao Pacto Fiscal com a União, que se aproxima, vai exigir mais sacrifícios porque a administração da dívida pública no contexto do ultraliberalismo – também e sobretudo no Governo Bolsonaro – exigirá mais sangue, suor e lágrimas. Qual vai ser o roteiro de convencimento a ser aplicado ao povo gaúcho, nos próximos 10 anos, se o gerenciamento empresarial do Estado permanecer nas mãos do mesmo grupo político que agora governa, é o exercício que a esquerda deve fazer neste momento de vitória conjuntural do Governo Leite.
Num primeiro momento, o argumento das “dificuldades” para crescer será tributado a que as reformas tenham um tempo de “maturação” para impulsionarem o crescimento, onde deverá entrar certamente os efeitos do “Coronavirus” sobre a economia internacional; num segundo momento, será reiterada a necessidade de aprofundar as reformas, a  necessidade de congelar as contratações no serviço público com o aumento galopante das terceirizações; num terceiro momento mais privatizações dos ativos públicos para “fechar” os buracos de caixa, abertos pela adesão ao novo regime fiscal e, provavelmente, aumento de impostos; num quarto momento ocorrerá a inculpação -como está ocorrendo no Chile- da esquerda política como responsável pelas ondas de inconformidade, que virão “debaixo para cima” aqui no Estado e no próprio país; o quinto momento,  um pedido de desculpas desesperado com a adoção de “medidas populistas” para se manterem no poder,não ocorrerá aqui no Brasil, como aconteceu no Chile e na Argentina.
Quem enganou tão bem e tão “cientificamente” – como enganaram até agora – não fará este pedido de desculpas nem como tática política. Vai campear a repressão e eles vão buscar outro dedicado “CEO” empresarial, para repor as coisas na “ordem”, num Estado que já foi virtuoso e rebelde. Lembram-se de Brizola na Legalidade? de Simon na defesa do Estado de Direito (hoje apoiador de Bolsonaro)? de Jair enfrentando Figueiredo? de Collares negando-se a ser extorquido pela União, na questão da dívida? de Olívio medindo cada ato do seu Governo, para a defesa dos pobres e dos excluídos?  Muitos não lembram, mas dos mais velhos ou menos jovens que restam com consciência crítica, neste Estado que começa a se pensar como empulhado pelo bolsonarismo, poderá surgir uma indignação libertária para moldar – com os jovens que já dão o caminho – um futuro que valha mais a pena viver. “Tempo de rasgar e tempo de remendar”, também como foi dito no Eclesiastes, o que significa não só resistir, mas também já desenhar a compaixão e a igualdade – desde logo – como meta unitária de Governo.
(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
**Fonte: Sul21

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