31 dezembro 2024

Réveillon - Tradição de soltar fogos de artifício prejudica autistas, idosos e pets e precisa ser revista

Eles estão dentro do espírito da época, mas por que não fazer apenas festas com fogos sem barulhos?

Queima de fogos na Orla do Guaíba marcou a virada dos últimos anos. Neste Réveillon, a festa será no Parque Harmonia - Foto: Joel Vargas/PMPA

Por Eugênio Bortolon*

A explosão de fogos de artifício na virada do ano é tradição. Tem um monte de significados, muita diversão e também muitos desastres. Basta fazer uma visita ao pronto-socorro do hospital ou outras casas que atendem emergências para ver os estragos. Lesões, fraturas, queimaduras e danos de vários tipos são comuns para quem não sabe manejar os artefatos.

Aqui em Porto Alegre e pelo Litoral – de Norte a Sul do Rio Grande do Sul – vão acontecer grandes estrondos de fogos. Está dentro do espírito da época, mas por que não fazer apenas festas com fogos sem barulhos, só coloridos, com mil peripécias pelos céus? A tradição sempre vence e danem-se os outros. É o que devem pensar os promotores destes arraiais da loucura – prefeituras, clubes sociais, festas e particulares e tantos outros.

Quem mais sofre? Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), idosos, pets (cães e gatos) e pássaros. Os fogos desencadeiam uma sobrecarga sensorial e provocam reações diversas aos autistas. Eles não entendem. Acham que o mundo vai acabar. O som de altos decibéis é avassalador, causa estresse, choros, desconforto e uma bruta ansiedade. As luzes brilhantes e estalos imprevisíveis causam profunda perturbação, segundo alertam entidades médicas. A audição dos portadores de autismo é mais sensível, fazendo com que o barulho dos fogos cause dores inimagináveis e comportamentos estranhos. Idosos com Alzheimer, em asilos ou casas de repouso, também sofrem e têm dificuldades para compreender a situação.

Para ajudar pessoas com autismo a lidar com o barulho dos fogos de artifício, médicos afirmam que se pode sugerir o uso de fogos sem sons, levar a criança para um lugar mais tranquilo e silencioso até que ela se regule, tentar explicar motivos dos fogos e dos ruídos, explicar que as sensações serão passageiras ou dar previsibilidade à criança, criando um ambiente de confiança e seguro. Profissionais da terapia ocupacional podem oferecer estratégias específicas para ajudar as pessoas com autismo a lidarem com essas sensibilidades.

O apresentador de TV Marcos Mion fez um alerta sobre a delicadeza desta questão. Pai de Romeo Mion, 19 anos, todos os anos ele vai para as suas redes pedindo moderação com fogos. “Tem que pensar em todos os autistas que entram em crise com o barulho. E também em todos os animais que entram num espiral de pânico. Não solte rojões.”

Rosângela Gomes, professora do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), conta que os foguetes podem afetar os autistas negativamente e agravar as suas percepções para qualquer outro tipo de barulho. “Os fogos de artifício afetam de maneira bastante negativa as pessoas que têm autismo. Seja pelo estímulo auditivo ou visual, que são muito intensos na noite de ano novo, as pessoas com autismo, seja um bebê, uma criança, um adolescente ou um adulto, vivenciam isso de maneira intensa e muito negativa”, explicou a professora em entrevista em vídeo.

“Uma das coisas que precisamos pensar é o ambiente em que essa pessoa vai estar. O ideal seria que ela pudesse passar a noite do ano novo com pessoas que ela conhece, num ambiente já conhecido por ela. Outra coisa que pode diminuir a intensidade dos sons seria colocar algodão no ouvido ou fones de ouvido”, explicou Rosângela.

Cuidados

Pelas redes sociais, são centenas ou milhares de alertas de ONGs e de protetoras de animais domésticos sobre os ruídos dos fogos. “Eles sofrem demais, não suportam estes barulhos, têm ouvidos sensíveis ao extremo. Se encontram uma porta aberta, desaparecem e talvez se percam para sempre”, diz Cristina Selhane, que participou de abrigos com cães e gatos desaparecidos na enchente de maio no Rio Grande do Sul. Ela recomenda que se feche em um quarto os pets, evitando que grandes estrondos cheguem com toda força até eles.

Paula Mayer Costa, médica veterinária neurologista da UFMG, explicou em entrevista para TVs que o animal escuta melhor que os seres humanos: “Eles têm esse sentido mais aguçado. Com isso, provoca-se uma excitação no animal e, com o barulho dos fogos, desencadeia diversas alterações”. Ela diz que os animais podem ter convulsões e problemas cardíacos, por exemplo. Os pets ficam com muito medo, tentam se defender, sair daquele lugar que está com muito barulho. O primeiro instinto dele é fugir. Por isso, nesses momentos, não é recomendável abrir portas ou janelas da casa, para que o animal não saia”, contou Paula.

Para evitar uma crise, a recomendação básica é colocar tampões de algodão nos ouvidos dos animais, faixas para protegê-los e tocar música clássica para acalmá-los. "Tentar manter o ambiente o mais tranquilo possível, ficar perto deles nesse momento", afirmou a médica veterinária.

Festa no Parque Harmonia

A festa de Réveillon 2025 no Parque Harmonia, em Porto Alegre, começa às 17h20 de terça-feira (31), com estimativa de encerramento às 3h de 1º de janeiro de 2025. A participação é gratuita, com entrada pelo Pórtico das Missões (acesso A) ou pela Casa do Gaúcho (acesso E) - os portões abrirão às 17h. A saída ocorrerá pelos demais pórticos e acessos do parque.

No palco, a espera pelo ano novo será animada por diversas atrações musicais locais e nacionais: Lauana Prado, Só Pra Contrariar, Papas da Língua, Alma Gaudéria, Luiza Barbosa, Estado Maior da Restinga, Gangster, DKG, A Figa, Viny e DJ Capu. O público poderá levar a sua própria bebida, exceção para copos e garrafas de vidro - serão permitidas apenas garrafas de espumante.

Para garantir a segurança e tranquilidade do público que passar a virada no local, a prefeitura e a empresa GAM3 Parks, juntamente com órgãos estaduais, estarão mobilizados na área da festa. À meia-noite, o céu será iluminado por uma chuva de fogos de artifício, com duração prevista de oito minutos – a atividade respeitará a legislação estadual sobre ruídos, segundo informa o site da prefeitura.

Lei Ordinária 15.366 de 2019 do Rio Grande do Sul proíbe a queima e soltura de fogos de artifício de estampido e de outros artefatos pirotécnicos com efeito sonoro ruidoso no estado. É prevista multa entre 102 e 512 Unidades de Padrão Fiscal (UPFs), dependendo da quantidade de fogos utilizados, a quem infringir a lei. O valor da multa é dobrado caso o infrator reincida em menos de 30 dias.

A legislação também estabelece que os fogos de vista, que produzem efeitos visuais sem estampido, e os dispositivos de uso moral e sonoro de utilização policial e de segurança estão fora da proibição. A pergunta que fica é: os fogos do Gasômetro respeitarão mesmo esta lei?

Já a sede Alto Petrópolis do Grêmio Náutico União, um dos clubes que realiza grandes eventos no final do ano, receberá dia 31 cerca de 2 mil pessoas em seu Réveillon. O tradicional show de fogos de artifícios ilumina o céu por cerca de 15 minutos, sendo um grande diferencial do evento. Com ou sem barulho? O clube diz que a soltura será bonita, contagiante, mas não informa se será silenciosa ou não.

*Edição: Katia Marko  - Via BrasildeFato/RS

30 dezembro 2024

Lira quer licença total para a corrupção

 


Por Jeferson Miola*        

Ilustração: Aroeira    

O empenho desmedido de Arthur Lira para liberar o repasse de emendas secretas diz tudo sobre o real interesse em jogo.

Não se viu antes um Lira tão mobilizado como agora. Nem nos momentos mais graves de ameaça à democracia e aos poderes da República, como no atentado terrorista ao STF em 13 de novembro, e na descoberta do plano militar-bolsonarista de assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.

Como se observa, o que de fato mobiliza Lira, a ponto de ele mover montanhas, são interesses nada nobres.

O presidente da Câmara dos Deputados reivindica uma licença total para a corrupção com emendas parlamentares.

Lira interrompeu o recesso de fim de ano, mobilizou líderes partidários e pediu uma reunião de urgência com o presidente Lula para pressionar o STF a liberar o assalto de fim de ano ao butim de R$ 4,2 bilhões de emendas ao Orçamento da União.

Falta nobreza e republicanismo nessa luta do Lira e da deputadocracia viciada em verbas do orçamento secreto.

Importante ficar claro que o STF não determinou o fim das emendas impositivas, decisão que mereceria todo aplauso, pois tratam-se de verdadeiras excrescências que não existem em nenhum outro país do planeta.

O Supremo somente relembrou os congressistas a respeito de critérios legais e constitucionais que devem ser observados no repasse de todo dinheiro público, inclusive aquele originado em emendas parlamentares.

O ministro Flávio Dino apenas determinou –no que foi acompanhado pelo plenário do STF– que o pagamento de emendas precisa observar as diretrizes mais comezinhas da execução de todo e qualquer gasto público numa República: a identificação de autor e beneficiário de cada emenda, a publicidade e a transparência no repasse do dinheiro público, a viabilidade técnica da obra ou serviço, o plano de aplicação financeira e a prestação de contas.

Para Lira, no entanto, esta determinação é inaceitável. Ele reivindica total obscuridade e absoluta falta de transparência e controle sobre o repasse dos R$ 4,2 bilhões que o ministro Flávio Dino corretamente mandou travar, a bem do interesse público.

Ora, por que essa resistência tão feroz e obstinada do presidente da Câmara em cumprir as leis de execução orçamentária aprovadas pelo próprio Congresso?

Por qual razão Lira e seus colegas insistem em ocultar informações elementares, que permitiriam o rastreamento, monitoramento e fiscalização do dinheiro público?

Por que, afinal, eles querem esconder até mesmo o nome do/a parlamentar que direciona dinheiro do orçamento nacional e para qual finalidade?

Por que esse medo genuíno com a transparência na execução do gasto público através das emendas parlamentares?

Será por alguma má intenção?

*Fonte: Blog do Jeferson Miola

29 dezembro 2024

Tempero da Notícia Retrospectiva 2024: prisão de generais golpistas, crise climática, eleições municipais e disputas econômicas no governo Lula

No último programa do ano, Rodrigo Vianna faz uma retrospectiva das crises que atingiram o planeta em 2024

Rodrigo Vianna é jornalista desde 1990. Durante sua trajetória, já passou pela Folha de S. Paulo, TV Cultura, Globo e Record - Willians Campos/ Brasil de Fato

2024 foi o ano em que a Justiça brasileira deu um passo decisivo para enfrentar o autoritarismo com a prisão de generais envolvidos na tentativas de golpe a democracia, além da escalada dos desastres climáticos no país, vitória do centrão nas eleições municipais e o cenário internacional cada vez mais polarizado pela extrema direita em ascensão. 

Estes são os destaques do Tempero da Notícia, programa produzido pelo Brasil de Fato e apresentado pelo jornalista Rodrigo Vianna, que, nesta edição, faz uma análise dos principais acontecimentos do ano em uma retrospectiva especial.

Rio Grande do Sul

A crise climática deixou de ser um tema abstrato para os brasileiros. O Rio Grande do Sul enfrentou a pior enchente de sua história, com chuvas que superaram 500 mm em alguns municípios em menos de 48 horas, afetando mais de 1 milhão de pessoas. O transbordamento do Guaíba invadiu Porto Alegre, inundando o centro histórico e paralisando a cidade.

Foram mais de 100 mil desabrigados, milhares de animais mortos e prejuízos que superaram R$ 8 bilhões. A tragédia expôs falhas de infraestrutura: as bombas de drenagem, abandonadas pela Prefeitura, se tornaram símbolo da negligência administrativa. Pequenos municípios como Muçum e Roca Sales foram devastados, e a resposta pública mostrou tanto solidariedade, com mutirões de ajuda, quanto oportunismo político, com fake news e fraudes.

Apesar da dimensão do desastre, o debate sobre medidas preventivas, como a implementação de planos climáticos e requalificação de áreas de risco foi tímido na análise de Vianna. O prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo (MDB), mesmo criticado por sua gestão da crise, acabou reeleito, evidenciando a complexidade do cenário político local.

Eleições municipais e o centrão

As eleições de 2024 consolidaram o domínio do centrão. Partidos como MDB e PSD, partido de Gilberto Kassab, ampliaram suas bases, elegendo prefeitos em capitais importantes, incluindo Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife.

O PT, embora tenha avançado em algumas capitais, em relação a 2020, e lançado novas lideranças, como Natália Bonavides em Natal (RN), sofreu perdas significativas, especialmente em São Paulo, com a derrota de Guilherme Boulos (Psol).

O bolsonarismo, por sua vez, perdeu força em várias frentes, reflexo de desgaste político e denúncias envolvendo Jair Bolsonaro (PL). 

Investigação do Golpe

Na visão de Vianna, a grande surpresa política do ano veio da Polícia Federal, que concluiu uma investigação sobre o golpe de Estado planejado por setores golpistas. O Brasil esteve, de fato, muito próximo de viver uma nova ditadura militar, com planos para assassinar o presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), o vice Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.

As investigações, apresentada em um relatório com quase 900 páginas, revelaram que o plano foi articulado dentro do Palácio do Planalto, com Bolsonaro e altos oficiais militares no comando. As provas incluíram mensagens, planilhas de logística e evidências materiais. Entre os 40 indiciados estão o ex-presidente e dois generais de quatro estrelas: Braga Netto e Augusto Heleno, que agora enfrentam processos na Justiça civil.

prisão de Braga Netto, descrito como o líder operacional do golpe, foi a primeira na história envolvendo um general de tal patente. A decisão foi um marco, colocando o Brasil diante de um ajuste de contas com sua herança autoritária.

Governo Lula

Apesar de uma recuperação econômica que incluiu queda no desemprego para 6,1% e crescimento do PIB acima de 3% nos nove primeiros meses do ano, o governo Lula enfrentou dificuldades em transformar os números em aprovação popular.

O pacote fiscal de Haddad, visto como uma vitória para o mercado financeiro, foi criticado por setores progressistas, que o acusaram de não priorizar investimentos sociais. Além disso, problemas de comunicação com a base popular e a saúde de Lula geraram incertezas.

O presidente foi internado duas vezes após sofrer uma queda e ser submetido a uma drenagem craniana. Isso levantou dúvidas sobre sua capacidade de concorrer à reeleição em 2026. No entanto, Lula terminou o ano fortalecido politicamente, indicando que, caso sua saúde permaneça estável, ele ainda é favorito em cenários eleitorais.

Extrema direita

No cenário internacional, o Brasil teve um papel de destaque nas articulações diplomáticas, reunindo líderes mundiais no G20, no Rio de Janeiro, e criando Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.

No entanto, o avanço da extrema direita ao redor do mundo, com a volta de Donald Trump nos Estados Unidos e a ascensão de figuras como Javier Milei na Argentina, gerou um clima de incertezas. Mas no Uruguai a Frente Ampla, liderada por Pepe Mujica, voltou ao poder.

Olímpiadas

A vitória das mulheres brasileiras no esporte foi uma das grandes alegrias nacionais em 2024. Nos Jogos Olímpicos, Rebeca Andrade se destacou na ginástica, conquistando o ouro e enchendo os corações dos brasileiros de orgulho. O vôlei, judô e skate também trouxeram grandes conquistas, mostrando a força feminina e renovando o ânimo do país.

Ainda Estou Aqui

O cinema também se destacou, com Ainda Estou Aqui levando quase 3 milhões de brasileiros às salas de cinema. O filme, protagonizado por Fernanda Torres, retrata a vida de Eunice Paiva, viúva de Rubens Paiva, desaparecido durante a ditadura militar. A produção foi um lembrete do custo humano do autoritarismo e levantou um debate urgente sobre justiça histórica.

Onde assistir

Tempero da Notícia vai ao ar todas as sextas-feiras, às 20h, no canal do Brasil de Fato no YouTube e na TVT, canal 44.1 – sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.

Moradores do estado de São Paulo podem acompanhar o programa pela Rádio Brasil Atual (98,9 FM na Capital Paulista e 93,3 FM na Baixada Santista), nos mesmos horários.

*Edição: Thalita Pires - Via Redação BdF

23 dezembro 2024

'2025 será o ano decisivo do Lula 3' (Entrevista com o escritor e historiador João Cezar de Castro Rocha)


Em entrevista para o canal de CartaCapital no YouTube, o escritor e historiador João Cezar de Castro Rocha, um dos principais pesquisadores sobre a extrema-direita no Brasil, faz um balanço dos desenvolvimentos políticos de 2024 e as perspectivas e expectativas para o Governo Federal no ano de 2025. Como barrar os ataques do dito "mercado" contra a política econômica e os desafios impostos pelo Congresso Nacional? Como contornar os problemas de comunicação do governo? E como evitar um retorno do bolsonarismo ao cenário nacional? 

-Clique no vídeo acima  para assistir.


21 dezembro 2024

Dia da infâmia: Congresso massacra pobre com emendas parlamentares para aprovar pacote neoliberal

Os efeitos do pacote da perversidade refletirão, sem dúvida, sobre a sucessão presidencial, sinalizando maiores dificuldades para Lula

  Arthur Lira e Lula (Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados)

Por César Fonseca*

Esta quinta-feira, 19, pode ser considerada o Dia da Infâmia, quando o Congresso, movido a emendas parlamentares milionárias, dominado, amplamente, pela direita e ultradireita conservadoras corruptas, aprovou ajuste fiscal neoliberal, cujo objetivo maior foi prejudicar os mais pobres para favorecer os mais ricos.

Em nome do combate à inflação, arrochou-se ainda mais o salário mínimo – base para reajuste de todos os demais salários e financiamento das aposentadorias – e tornou mais difícil acesso ao BPC – Benefício de Prestação Continuada –, destinado aos socialmente excluídos e deficientes físicos.

Inacreditável.

Tal neoliberalismo perverso visa fazer economia de algo em torno R$ 70 bilhões, para continuar engordando os 0,1% da população, que fatura anualmente R$ 840 bilhões em forma de pagamento de juros e amortizações da dívida pública.

Seguramente, o legislativo brasileiro, ao aprovar o ajuste fiscal proposto pelo governo, sob pressão da Faria Lima, alinha-se à barbárie econômica, que continuará bloqueando o desenvolvimento com distribuição de renda, prometido pelo presidente Lula em campanha eleitoral, que lhe garantiu em 2022 o terceiro mandato presidencial.

De agora em diante, sai de cena a política salarial distributiva do salário-mínimo até então reajustado pela inflação + o acumulado do PIB nos dois anos anteriores.

No seu lugar, fica, apenas, a inflação mais reajuste variável de 0,6% a 2,5%, correspondente ao aumento de gastos públicos, excluídos pagamento dos juros e amortizações da dívida, como preço para cumprir com o teto neoliberal de gasto.

Se continuasse a regra que os congressistas acabam de derrubar, os trabalhadores receberiam inflação do ano anterior de 4,8%, somada ao crescimento do PIB de 3,2%, correspondente aos dois anos anteriores.

Os assalariados pelo mínimo, portanto, serão submetidos a um brutal arrocho, para economizar, anualmente, R$ 7 bilhões, a serem repassados aos rentistas.

Já os deficientes físicos e excluídos de qualquer renda, que percebem o BPC, terão que submeter a novas regras, sujeitando-se às biometrias subjetivas sob o argumento de combate a fraudes, que colocam os miseráveis sob a desconfiança geral dos poderes públicos.

PRESSÃO IRRESISTÍVEL DO RENTISMO

Como houve resistência do governo em submeter-se ao pacote fiscal, que leva à desmoralização e desgaste das bases políticas que o apoiam, o mercado financeiro promoveu, nas últimas semanas, a mais brutal onda especulativa, que levou o dólar à cotação histórica de R$ 6,20.

Diante dessa realidade perversa, que coloca a economia em total instabilidade, o Banco Central Independente puxou a taxa de juro básica, Selic, em 1 ponto percentual, que significa aumento de mais de R$ 50 bilhões no total da dívida pública.

Não satisfeito, o BC, sob pressão inaudita da Faria Lima, cogita mais dois aumentos de 1 ponto percentual cada para janeiro e fevereiro de 2025.

Prevê-se juros na casa dos 14% no primeiro semestre e na dos 15% ao final do próximo ano.

Tradução: o que se pretende economizar taxando cruelmente os mais pobres será anulado pelo aumento especulativo dos juros.

O resultado prático, para os próximos meses, será expectativas pessimistas para os setores produtivos, como alertam a Confederação Nacional da Indústria(CNI) e a Confederação Nacional do Comércio(CNC).

A economia tenderá ao mergulho nas incertezas diante do que objetivamente ocorrerá, qual seja, redução da renda disponível para o consumo, decorrente dos salários mais baixos e do achatamento dos programas sociais, reajustados pelo índice salarial afetado pela restrição orçamentária neoliberal.

REELEIÇÃO AMEAÇADA

Os efeitos do pacote da perversidade refletirão, sem dúvida, sobre a sucessão presidencial, sinalizando maiores dificuldades para a esperança da esquerda de alcançar o quarto mandato do presidente Lula, se ele vier disputar a reeleição.

Já o Congresso, protegido por uma mídia conservadora, porta-voz do mercado, que compactua com o arrocho fiscal e monetário, de modo a continuar a farra do rentismo especulador, aumentará o seu poder por meio da corrupção das emendas parlamentares que contribuíram decisivamente para aprovação do pacote neoliberal.

Politicamente, perde poder o Executivo, com redução da importância do presidencialismo, enquanto avança o semi-presidencialismo ou o semi-parlamentarismo, que aumenta a influência da elite econômica e financeira comandada pela Faria Lima em aliança com o Legislativo.

*Repórter de política e economia, editor do site Independência Sul Americana - Fonte: Brasil247

20 dezembro 2024

De Auroras e Benetazzos (ainda estamos lutando aqui)

Artigo do jornalista e ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo de Tarso Vannuchi  trata do reconhecimento às vítimas da Ditadura Miltar

Tudo o que esses estudantes representavam sobreviveu na forma de múltiplos avatares. Foto: Acervo FFLCH-USP

Por Paulo de Tarso Vannuchi*

Quem saiu na frente, desta vez, foi a velha USP, aquela universidade sempre apontada como elitista e conservadora. Excelente avanço, muito bem-vindo.

Na mesma semana, na Psicologia, foi diplomada simbolicamente a aluna Aurora Maria do Nascimento Furtado, trucidada sob torturas no Rio de Janeiro em novembro de 1972. Dois dias depois, na FAU, recebeu a mesma celebração honorífica Antonio Benetazzo, o inesquecível professor de meu primeiro cursinho de marxismo, todos sentados nas almofadas de seu apartamento no Edifício Copan, 1968, quando eu tinha 17 anos e ele 26.

Sobre Aurora, Renato Tapajós escreveu Em câmara lenta, enquanto Alípio Vianna Freire compôs lindos versos de combate: “Há que haver sobrado alguma poesia. Há que haver pelo menos a certeza poética emblemática de que a luta continua. E há que haver a aceitação dessa certeza. Porque não posso sozinho dinamitar a ilha de Manhattan e construir uma nova Aurora”.

Na diplomação de Benetazzo pela FAU, Ermínia Maricato doou ao acervo da faculdade a tela que expôs durante décadas na sala de sua casa, onde esse guerrilheiro e notável artista plástico escreveu num canto da obra alguns versos de Fernando Pessoa: “Ai que prazer não cumprir um dever, ter um livro para ler e não o fazer! Ler é maçada, estudar é nada.” (a produção artística de Benetazzo pode ser conhecida visitando o acervo digital do Instituto Vladimir Herzog).

A advogada Eny Raimundo Moreira, recentemente homenageada por nossa prefeita Margarida Salomão, em Juiz de Fora (MG), conseguiu ver o corpo de Aurora, constatando afundamento craniano de um centímetro, resultado do torniquete que os torturadores apelidaram “Coroa de Cristo”.

Sobre Benetazzo, um torturador que decidiu falar sob anonimato relatou que, após dias de tortura sem ceder uma única informação, foi dada pelos superiores a ordem de execução, efetuada com inúmeros disparos.

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Estudantes mortos pela ditadura, Gelson Reicher e Antônio Carlos Nogueira Cabral, diplomados na FMUSP – Foto: Acervo FMUSP

Ainda rolando no solo, o quase-corpo de Benê recebeu no crânio o golpe de um paralelepípedo, arremessado como gesto de misericórdia. O assassino relatou que, por muito tempo, ao abrir um guarda-roupa em sua casa, sempre era assombrado pelo rosto do guerrilheiro.

Um ano antes da diplomação de Aurora e Benetazzo, o primeiro passo tinha sido dado na Geologia, com a diplomação dos alunos Ronaldo Queiroz e Alexandre Vannucchi Leme, assassinados pelo Doi-Codi em 1973, sendo esse último o nome que batiza desde 1976 o DCE da USP, que também já teve como presidente Rui Falcão, deputado federal e ex-presidente nacional do PT.

Sobre Queiroz, sabe-se que os agentes do Doi-Codi saltaram de uma viatura num ponto de ônibus da avenida Angélica, perguntaram a outro indivíduo se era ele aquela pessoa e dispararam em seu rosto. Foi o último presidente do DCE antes de sua reorganização poucos anos depois.

Existem muitas publicações sobre Alexandre, sendo a mais impactante ‘Eu só disse meu nome‘, de Camilo Vannuchi, que veio acompanhada de um didático podcast e de um vídeo-jogral gravado por artistas do campo antifascista, como Daniela Mercury, Dira Paes, Wagner Moura, Pauto Betti, Antonio Pitanga, Bete Mendes, Osmar Prado, Celso Frateschi, Petra Costa e outros do mesmo brilho.

Cada um desses gestos de reconhecimento vai se somando para construir um novo impulso em defesa da chamada Justiça de Transição, indispensável para consolidar uma democracia toda vez que algum país emerge de períodos tirânicos.

O impulso vem se ampliando. Na mesma USP, já foram diplomados médicos Antonio Carlos Nogueira Cabral e Gelson Reicher, meus companheiros de Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) em 1969 e 1970. Nas Arcadas foram lembrados Arno Preis e João Leonardo da Silva Rocha. A Poli agendou diplomações para os próximos meses. Entre os quinze diplomados da FFLCH, foi incluída a guerrilheira Helenira Resende, desaparecida durante a Guerrilha do Araguaia. Em 9 de dezembro foi reinaugurado na Praça do Relógio um monumento com a inscrição dos nomes de todos os membros da comunidade USP assassinados pela ditadura.

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Estudantes da FFLCH mortos em luta contra ditadura e que receberam diploma póstumo.
Foto: Acervo FFLCH-USP

A UnB já diplomou o desaparecido político Honestino Guimarães, último presidente da UNE antes de sua reconstrução. Seguiram-se ou ainda seguem programadas ações na mesma trilha pela UFRJ, UFMG, UFPE, UFRN, UFBA, muitas outras.

A brutalidade com que foram executados esses militantes naquele momento de resistência heroica, precisou ser resumida neste texto, unindo denúncia e memória na busca de um Brasil onde o império da tortura nunca volte a existir. Nunca mais.

Cabe, porém, não falar unicamente do lado terrível dessas histórias. E sim evocar a força vital e a energia revolucionária que emanavam desses lutadores. Tão poderosas que não podem morrer.

Tudo o que esses estudantes representavam em seu tempo sobreviveu na forma de múltiplos avatares. Com outros rostos e assumindo outros corpos, lá estavam eles enfrentando Erasmo Dias na PUC em 1977; seus gritos ecoaram na Praça Charles Miller, na Boca Maldita, no Anhangabaú, na Cinelândia e no país inteiro das Diretas Já; exigiram a derrubada de Collor em 1992, com pinturas indígenas riscando suas caras; uniram-se às greves operárias na Vila Euclides.

Sobrevivendo, é provável que tivessem se integrado à construção do PT, como fizeram Zé Dirceu, Travassos, Genoíno, Vladimir Palmeira e muitos de nossos fundadores.

Neste final de 2024, com tudo o que já sabemos sobre as eleições municipais, vitória de Trump, massacre de Gaza e sobre a trama assassina da ultradireita terrorista, evocar os que tombaram é lembrar, aqui no PT e no campo da esquerda (que não morreu e nunca morrerá, meu querido Safatle) a força dessa energia imortal de quem luta por justiça, igualdade e liberdade.

A trajetória de quem persegue esses horizontes históricos sempre foi marcada por vitórias e derrotas, ciclos de entusiasmo ou desalento. Esses opostos convivem na conjuntura de hoje, em difícil decifração. Ignorar os avanços presentes contribui para desmotivar. Agigantá-los serve somente para contratar novas derrotas.

A USP, por exemplo, que já teve próceres da ditadura como Alfredo Buzaid, Gama e Silva ou Delfim Netto em postos importantes, deve ser aplaudida hoje pelo gesto pioneiro. Sinal de que pode avançar muito mais. A instituição, que nasceu com os sobrenomes Mesquita e Salles Oliveira, criou em 2013 uma Comissão da Verdade que produziu radiografia impiedosa sobre as perseguições e a repressão que se abateu sobre ela.

Entre suas catorze recomendações, propôs a diplomação dos alunos e homenagens aos professores, que atingem quase meia centena de assassinados, muitos dos quais ainda sem localização dos corpos para que pudesse ser realizado o rito milenar de um funeral de despedida.

Comprovou centenas e centenas de presos, entre alunos, professores e funcionários, submetidos a torturas físicas ou psicológicas como regra geral. Perseguições de todo tipo. Número incalculável de atingidos pelo ambiente de terror imperante. Incontáveis ocupações do seu campus principal por forças militares e policiais. E sabe-se que um cenário igual foi reproduzido na vida universitária de todo o país.

A Comissão da Verdade na USP foi uma das muitas – mais de cem – que se espraiaram por entidades sindicais e estudantis, universidades, governos estaduais, Legislativos e na própria capital paulista. Nasceram como fruto da ruptura histórica que foi a conquista da Comissão Nacional da Verdade (CNV), concebida durante o Governo Lula a partir do polêmico PNDH-3 e implementada no Governo Dilma. Seu Relatório Conclusivo foi divulgado em 10 de dezembro de 2014, incluindo 29 recomendações.

Esse gigantesco inventário sobre a violação massiva de direitos humanos no regime militar, num somatório de milhares e milhares de documentos e depoimentos que dão nome aos bois, com datas e números precisos, deve ser considerado um verdadeiro ponto de partida para mudanças que os últimos anos mostraram ser de urgência dramática.

Os construtores da CNV se apoiavam numa tese central: se a violação sistemática promovida pelo aparelho militar repressor não fosse examinada, individualizada e processada em todos os sentidos, erguendo um muro de contenção para que nunca mais se repetissem, elas fatalmente retornariam.

A tese foi comprovada de modo trágico pelo advento do bolsonarismo e da ameaça à democracia que ele segue representando hoje. Numa palavra: sem implementar as recomendações da CNV as academias militares voltarão a produzir outros Bolsonaros, Helenos, Villas-Boas e Bragas Netos.

Defensores de direitos humanos, juristas, intelectuais, artistas, familiares e vítimas daquele brutal ciclo repressivo exigem justiça e um acerto de contas que dificilmente será comparável à prisão de generais e torturadores que ocorreu na Argentina, por exemplo.

Os dois contextos históricos de transição foram muito diferentes e nunca se deve copiar modelos. Mas cabe reconhecer que a não implementação das 29 recomendações mencionadas guarda relação com o avanço fascista sobre as instituições democráticas. Guarda relação com o impeachment de Dilma, votado na Câmara sob elogios ao maior dos chefes torturadores. Guarda relação com os crimes cometidos contra Lula pela Lava Jato. Guarda relação com a intentona do 8 de janeiro. Guarda relação com a conspiração assassina descrita nas 884 páginas de um relatório provido de robusta carga probatória.

Se, nesta virada 2024-2025, o Brasil atravessa dificuldades alarmantes geradas pelo Legislativo mais reacionário de nossa história, se a Faria Lima segue tentando impor seus interesses rentistas contra as agudas demandas sociais de nosso povo, é também verdade que o cenário favorável a desbloquear a agenda da Justiça de Transição torna-se mais promissor a cada dia, até mesmo nas telas da velhaca Rede Globo.

Ajuda muito o explosivo sucesso do filme ‘Ainda estou aqui‘, que desvela o assassinato sob torturas e desaparecimento de Rubens Paiva, parlamentar do PTB cassado em 1964, com desempenho magistral de Fernanda Torres interpretando a heroína Eunice Paiva, que seguiu lutando pela criação de seus muitos filhos e empunhando todas as grandes causas democráticas.

Mais de 2,5 milhões de brasileiros já saíram das salas de exibição contagiados pela emoção de conhecer uma verdade que as Forças Armadas seguem obstinadas estupidamente em negar.

Sob emoção, conseguem ligar essa mentira com a enxurrada de outras mentiras que tomou conta dos legislativos conservadores, das campanhas eleitorais, dos juizados de diferentes tipos, de muitas igrejas, veículos da mídia e redes sociais. Mentiras essas que foram angulares para viabilizar a vitória de Bolsonaro e o assalto às instituições civis por hordas de militares.

Segue vivo o envenenamento pela Doutrina de Segurança Nacional, ministrada ainda hoje na formação militar e policial. Doutrina essa que aponta o fantasma do comunismo escondido em todos os guarda-roupas das consciências culpadas de quem foi mandante, cúmplice ou conivente com as torturas e desaparecimentos. Fantasma do comunismo que enxergam em cada sala de aula, em cada peça teatral, em cada livro, em cada sindicato de trabalhadores.

Nosso presidente Lula não pode permitir que seu terceiro mandato – que o Brasil prefere seja sucedido por um quarto – termine sem novos avanços nesse campo.

É conhecida a sua predileção pelo chamado caminho do meio. Eu mesmo, seu assessor por longos anos e vindo de outro ciclo de lutas, tive o privilégio de aprender muito com ele sobre isso. Lembre-se que o conceito de caminho do meio já está presente em filósofos como Aristóteles e Descartes.

Mas qual caminho do meio seria possível, nesse caso?

Aquele que a correlação de forças possibilitar, mas incluindo necessariamente o reconhecimento público das violações pelas Forças Armadas e comandos policiais.

Para que a cidadania volte a respeitar os militares brasileiros e até se orgulhar de seu papel na Defesa Nacional, para que os pobres deixem de temer a ação das polícias nas periferias, é urgentíssimo reestruturar todos os currículos de sua formação.

Sem meios tons, nem eufemismos, os militares estão devendo ao Brasil a declaração formal e solene de que não admitem em nenhuma hipótese a prática de torturas, que os direitos humanos serão ministrados e assimilados em todas as unidades, que os altos oficiais receberão aulas de Direito Constitucional para que nunca mais deixem de reconhecer a subordinação de todos os aparelhos armados às autoridades civis emanadas do voto popular.

Começando pela aprovação das leis que proíbam de forma taxativa a participação de militares e policiais ainda na ativa em qualquer disputa de mandato eleitoral.

*Paulo de Tarso Vannuchi é jornalista e Mestre em Ciência Política. Foi ministro dos Direitos Humanos no Governo Lula (2005-2010) e membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos/OEA (2014-2017)

**Via Teoria e Debate e