Por Ângela Carraro*
Um mês depois de publicar artigo sugerindo aos leitores de O Globo que o PT deveria ser perdoado por seus erros, o mesmo articulista, Ascânio Seleme, volta a surpreender.
Em artigo publicado hoje (08/08) em O Globo, com o título “Lula Inocente”, ele anuncia a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022.
O artigo de Seleme, porta-voz da família Marinho, saiu, pelo menos até o final desta manhã, apenas na edição impressa de O Globo. Fato que, para quem entende um pouco de mídia, indica que se trata de balão de ensaio ou talvez de um recado para determinados setores.
Infelizmente, a autodenominada “grande mídia” brasileira há muito age assim.
Recados à parte, o que está por trás desta aparente guinada editorial do Grupo Globo?
Amor a Lula e ao PT certamente que não.
Ter descoberto, apenas agora, que Lula é inocente nos processos, sem provas, pelo quais foi condenado pelo ex-juiz Sérgio Moro, também não.
Pelo visto, a família Marinho constata, um tanto apavorada, o que a gente sempre soube.
RISCO REAL
A disputa política no Brasil em 2022 não se dará entre a extrema-direita de Bolsonaro e a direita de Sérgio Moro, mas entre Bolsonaro e a esquerda, representada pelo PT.
E dentro do PT, Lula, além de inocente, é o candidato capaz de derrotar Bolsonaro.
Some-se a isso que a família Marinho já entendeu que quando Bolsonaro diz que pode cassar a concessão da TV Globo, não está brincando.
O risco é real.
A TV Globo é o principal e até pouco tempo atrás, o mais lucrativo veículo do Grupo Globo.
Desde que Bolsonaro tomou posse, as verbas publicitárias oficiais passaram a ser distribuídas ao sabor dos interesses políticos e pessoais do ocupante do Palácio do Planalto e não mais por intermédio da chamada mídia técnica.
Vale dizer: o valor da publicidade é proporcional à audiência.
Há registros feitos pela CPI das Fake News de que essas verbas estão sendo usadas para irrigar sites conhecidos por disseminar mentiras contra o STF e o Congresso Nacional e contra adversários do presidente da República.
Sem as verbas do governo, o Grupo Globo, que sempre defendeu a redução do Estado e a iniciativa privada, está encolhendo a olhos vistos.
E, dentro dele, a TV Globo é a que apresenta mais problemas.
Mesmo preferindo chamar esse encolhimento de “reestruturação”, a realidade é que a TV Globo começa a perder a batalha junto à concorrência.
Foi obrigada a demitir, reduzir salários de jornalistas e artistas, cancelar parte de sua produção e a não renovar uma série de contratos envolvendo a cobertura de campeonatos esportivos no Brasil e no exterior.
É importante lembrar que Bolsonaro também tirou da TV Globo a exclusividade na transmissão de jogos de futebol no país.
Agora, o time mandante de campo pode decidir como quer que a partida seja transmitida. O Flamengo, por exemplo, já transmitiu com sucesso, pela internet, uma de suas importantes partidas.
Se a moda pegar, a Globo está lascada, pois ela tem no futebol uma de suas maiores fontes de recursos.
O FEITIÇO CONTRA O FEITICEIRO
Mas os problemas da TV Globo estão longe de ser apenas esses.
As TVs Record e SBT estão avançando sobre o seu público, valendo-se das verbas que antes iam para a Vênus Platinada e do apoio ao atual governo.
Além desses dois concorrentes diretos, a TV Globo está sentindo de perto também a pressão da CNN Brasil.
A emissora estadunidense iniciou o funcionamento no país há poucos meses, mas já disputa em pé de igualdade a audiência com a Globonews.
Ao contrário do Grupo Globo, a CNN está capitalizada e tem por trás de si fortes setores empresariais nacionais e a própria matriz estadunidense.
Não deixa de ser irônico constatar que algo parecido com o feitiço utilizado pelo patriarca Roberto Marinho para alavancar a TV Globo quando do seu início, em 1965, pode se repetir.
O ilegal acordo com o grupo estadunidense Time-Life — que garantiu naquela época a arrancada da Globo sobre os concorrentes –, pode ser substituído agora, sem intermediários e de forma legal, pela CNN. Ela poderia vir a ocupar, num horizonte próximo, o espaço que tem sido da Globo.
Certamente os três herdeiros de Roberto Marinho estão atentos para isso.
Não por acaso, a família Marinho sabe que só o Estado brasileiro pode impedir que, um jogo brutal, ao sabor de interesses internacionais, ponha fim à sua história.
Óbvio que o Grupo Globo não fecharia as portas de uma hora para a outra. Mas teria destino semelhante ao do poderoso Diários Associados, do primeiro magnata da mídia brasileira, Assis Chateaubriand.
Chateaubriand, que chegou a possuir três dezenas de jornais, emissoras de rádio e de TV nas principais capitais brasileira, além de uma revista semanal, apoiou o golpe militar de 1964 e acabou tendo suas empresas engolidas por ele.
Os militares preferiram apostar em um empresário com menos poder e mais maleável e o escolhido foi Roberto Marinho.
Os Diários Associados se limitam na atualidade a uma fraca presença em Brasília e em Minas Gerais e enfrentam dificuldades até para pagar funcionários em dia.
Por trás do artigo de Seleme está também a constatação de que o candidato dos sonhos do grupo Globo, o ex-juiz Moro, não tem chances nas eleições de 2022.
Além da suspeição que deve atingi-lo por seus julgamentos marcados por lawfare contra Lula, Moro ainda corre o risco de ficar impedido de se candidatar por oito anos.
QUARENTENA
Já existe articulação no Congresso Nacional nesse sentido. Ela não envolve apenas Moro, mas o atingiria.
O Brasil é dos raros países em que juízes e integrantes do Poder Judiciário podem deixar seus cargos e candidatarem-se em seguida, sem serem obrigados a um período de quarentena.
No momento, estuda-se que a quarentena para juízes possa ser de oito anos.
O argumento é que o poder dos integrantes do Judiciário permite que alguns acabem se pautando por interesses pessoais como no caso de Moro, que virou ministro, sonhava com uma vaga no STF e agora se posiciona como candidato a candidato em 2022, até agora com o apoio da Globo.
Pragmática como é, a família Marinho não terá – como parece que não está tendo – nenhuma dor de consciência em jogar Moro ao mar.
Da mesma forma que não teve nenhum problema em divulgar as recentes operações da Lava Jato contra seus antigos amigos, os tucanos graúdos José Serra, Geraldo Alckmim e Aécio Neves, acusados, com provas, de pesada corrupção, quando eles não lhes são mais úteis.
Em recente entrevista, o ex-ministro Aloizio Mercadante disse com todas as letras que a Globo corre risco de ser destruída num segundo governo Bolsonaro.
O próprio Lula, também em entrevista, ao comentar sobre as decisões do STF que indicaram a suspeição de Moro, anunciou que está pronto para voltar à presidência da República, lembrando que depende apenas do próprio STF e da vontade do povo brasileiro.
O PEDIDO QUE FALTA
Na mesma entrevista, ao ser questionado sobre a campanha que a Globo fez contra ele e o PT, levando-o injustamente à prisão, o ex-presidente mostrou ter enorme consciência sobre tudo isso.
Deixou claro que seu governo sempre tratou o Grupo Globo e a mídia brasileira de forma republicana, reconhecendo que não é mais possível que parte dessa mídia continue a agir sem qualquer parâmetro ou compromisso com a verdade.
Ele lembrou que o Código Brasileiro de Telecomunicações é antigo, de 1962, e que precisa mudar para dar conta de tudo de novo que aconteceu em matéria de comunicação nessas seis décadas.
Lembrou que seu governo deixou pronto para Dilma Rousseff um anteprojeto de legislação democrática para a mídia brasileira, mas que ela preferiu não dar sequência ao assunto.
O recado de Lula não poderia ser mais explícito.
O artigo de Seleme veio na sequência do que disse Lula.
A leitura do artigo, no entanto, permite mais de uma interpretação.
Ao acenar com a vitória de Lula, o “porta-voz” da família Marinho pode estar lançando um alerta do que isso representa para Bolsonaro e estendendo novamente os braços para o ex-capitão.
Caberá à Globo, a partir de agora, explicitar o que realmente pretende.
Vai continuar mordendo e assoprando Bolsonaro e ir para o buraco, como está acontecendo, ou vai dar visíveis provas de que aposta na democracia e que está disposta a aprender a viver dentro das regras democráticas?
Ótimos exemplos não lhe faltam. Em todos os países democráticos, a regulação da mídia é uma realidade e nem por isso as empresas de mídia comercial deixam de ter o seu lugar e lucrarem. Só não podem manipular e nem trair a confiança do público.
Cabe agora não mais ao “porta-voz” da família Marinho, mas aos três filhos do “doutor Roberto” assinarem um editorial, na capa do jornal O Globo, com ampla repercussão nos demais veículos do grupo, com um pedindo de desculpas a Lula, ao PT e, sobretudo, ao povo brasileiro.
Para início de conversa, eles precisam reconhecer a culpa que têm em tudo de ruim que causaram ao Brasil e ao povo brasileiro nesses quatro anos de golpe.
*Ângela Carrato é jornalista e pofessora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.
**Postado originalmente no site Viomundo
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