Brasil de Fato conversou com jovens cubanos sobre o atual momento da ilha e as propostas para tirar o país da crise
Cuba enfrenta bloqueio dos EUA, que deve se aprofundar com Donald Trump - Wikimedia Commons
Por Gabriel Vera Lopes - Brasil de Fato | Havana (Cuba)*
As celebrações populares se espalharam por toda a ilha. Em todas as ruas, multidões de pessoas se reuniam para assistir ao desfile daqueles jovens que durante anos enfrentaram a ditadura. Tudo parecia um carnaval.
Seis longos anos de luta popular, contra todas as probabilidades do realismo político, tinham passado até que finalmente ocorrera a queda da ditadura de Fulgencio Batista no 1º de janeiro de 1959. Os acontecimentos naquela pequena ilha do Caribe, até então praticamente desconhecidos pelo resto do mundo, logo se tornaram um verdadeiro terremoto social, cultural e político em todo o mundo.
A Revolução Cubana rapidamente se tornou um dos eventos mais importantes da América Latina e do Caribe. Toda a história da segunda parte do século XX no continente esteve profundamente marcada pela influência da revolução naquele pequeno país que fez com que “pela primeira vez o socialismo falasse espanhol”.
Sessenta e seis anos após o triunfo da Revolução - completados nesta quarta-feira (1º) - Cuba enfrenta desafios enormes e complexos. Sitiada pelo sufocante e ilegal bloqueio dos EUA, o país está passando por momentos difíceis de crise e anos de profundas transformações sociais e econômicas. Enquanto a Revolução enfrenta um dos desafios mais complexos de sua história: não se converter numa memória do passado, mantendo-se contemporânea da sua própria época.
Em um novo aniversário da epopeia cubana, o Brasil de Fato conversou com três jovens sobre suas visões do presente e do futuro da revolução, assim como dos desafios geracionais em tempos de crise.
'Uma potência do aprendizado pode nos levar adiante'
2024 foi novamente um ano marcado pela crise. “Essa afirmação não pode ser tomada levemente”, afirma Ernesto Teuma, professor de Teoria Política, observando que há um sentimento generalizado de que “a crise se espalhou demais”.
“Acho que o custo da crise não é apenas econômico e social, no sentido das transformações que ela está produzindo. Também tem sido subjetivo. Enfrentamos uma série de questões que temos que enfrentar de forma direta. Podemos avançar, podemos sair dessa novamente, como nos piores momentos do passado? Estamos de fato enfrentando a
pior crise que a revolução já sofreu em sua história?"
Longe de todo otimismo irreflexivo, ressalta que nesses anos também houve “um resíduo, um poder, um processo de aprendizado que talvez possa nos levar adiante”. Ele afirma que a revolução está enfrentando os “desafios de suas próprias conquistas”.
Assumir os desafios da Revolução implica ser capaz de responder à pergunta: “O que significa o socialismo em Cuba hoje? Depois da reforma econômica, depois do nascimento do setor privado com a desigualdade e em meio à crise de um confronto total com a presidência dos EUA”, aponta.
“O que significa o socialismo? Não apenas para Cuba, mas para a esquerda latino-americana que ainda hoje olha para Cuba como um farol e um ponto de referência. Não apenas por sua resistência, mas pela possibilidade de um desenvolvimento positivo da própria revolução que encontre soluções para desafios sem precedentes para nós, mas também para o resto da esquerda que está buscando, em meio à crise, uma saída. E que sabe que ela existe, mas ainda está procurando por ela".
Ressalta que essas perguntas não podem ser respondidas com as certezas do passado. São as novas gerações que devem assumir seu compromisso histórico com uma Revolução que tenha a capacidade de se projetar no futuro.
“Como disse Frantz Fanon, cada geração deve encontrar sua própria missão e cumpri-la ou traí-la. Há um desafio geracional no socialismo cubano e na Revolução Cubana, o que implica falar um idioma e reformular um conjunto de ideias que não têm a ver apenas com a tradição. Elas não têm a ver apenas com Martí e Fidel. Mas com os desafios históricos que, precisamente, o triunfo das ideias daquela geração, o triunfo de uma opção radical pela independência e pela justiça social, apresentam neste século”.
Como em qualquer processo de debate e renovação, Teuma ressalta que a busca por novas perguntas e respostas é sempre um processo complexo.
“Acho que será um debate incômodo, justamente porque as novas ideias não podem deixar de ser incômodas, porque implicam em tirar do lugar aqueles lugares onde nos sentimos confortáveis por tanto tempo, lugares discursivos, lugares intelectuais, lugares políticos, e nos sentirmos expostos à nova situação, a perguntas para as quais provavelmente ainda não temos respostas, mas para as quais é imperativo que as encontremos”.
'Lutamos porque exista esperança no mundo'
Como parte das profundas tradições internacionalistas da Revolução, uma parte da juventude cubana assume o projeto revolucionário na ilha como uma extensão das lutas globais por um mundo sem opressão. Uma luta que, assim como em 1959, deve continuar escapando de toda a “miséria do possível”, lutando contra toda a adversidade do “não é possível” e continuando sonhando com um mundo diferente.
“Acho que aspirar a uma sociedade na qual todos nós possamos decidir o tempo todo e todos possamos ter o mesmo destino é algo que me motiva particularmente a sair e lutar contra Golias. Quando saio para lutar contra Golias, seja qual for a maneira que possamos entender isso no país, não penso apenas em Cuba”, reflexiona o jovem matemático José Julián Díaz Pérez.
Ele ressalta que Cuba é o nome de um importante elo na luta por justiça e igualdade. Lutas que estão ocorrendo em diferentes territórios e países.
“Acredito que o destino de Cuba não é apenas Cuba. E quando Cuba luta contra Golias, não está lutando apenas por si mesma, está lutando por todos os povos do mundo, pelos milhões e milhões de pessoas que não têm comida, pelos milhões e milhões de pessoas que não têm a chance de decidir se estarão vivas amanhã ou não. Acredito que quando lutamos contra Golias, lutamos por tudo isso. Lutamos para que no mundo exista uma esperança de mudar a sociedade para sempre, fazendo com que o capital não seja o centro do mundo, mas sim a vida humana”.
"Talvez o futuro de Cuba esteja em disputa agora mais do que nunca", pondera o estudante. "E não podemos acreditar que os tempos de Cuba tenham sido fáceis, eles sempre foram muito complicados. Portanto, nesse sentido, acho que é necessário aprofundar as mudanças importantes. Não podemos pensar hoje em colocar curativos para resolver o amanhã, temos que pensar no que estamos fazendo hoje, porque nossas vidas estão em jogo, cada transformação pode significar o futuro de Cuba."
Um povo que ainda acredita na construção da Revolução
A revolução nunca foi igual a si mesma. Cada época, com seus desafios, sucessos e erros, significou “revolucionar a revolução”. E toda revolução, para ser verdadeira, precisa da participação ativa do povo trabalhador.
“Ver essa
mobilização e ver que as pessoas continuam respondendo à Revolução, especialmente saindo para marchar, nos enche de esperança e nos reativa. Permite que se perceba a estatura deste povo. Como este povo, apesar de todas as coisas ruins pelas quais está passando, ainda é consciente e ainda quer construir um modelo de sociedade diferente daquele do capital e ainda quer tornar possível o impossível”.
Rivero destaca que "ver essas pessoas nas ruas comemorando, se divertindo, mas também gritando palavrões contra a embaixada ianque, dá uma medida da estatura do povo cubano".
"Se conseguirmos mobilizar essa força, se essa força não for deixada para trás e for colocada na tarefa de aprofundar o socialismo, então teremos uma revolução por muito tempo", afirma.
*Edição: Lucas Estanislau - Via BdF