07 junho 2021

"Pealo de Sangue" - Daniel Wolff/Raul Ellwanger



Alguns “bastidores” da canção “Pealo de Sangue”

 

Por Raul Ellwanger*


Gravada em meu primeiro vinil de 1979, com o produtor Sepé Tiarajú de los Santos não demos muita importancia a esta música, pois ficou na posição 5 do lado B.  Por sorte Fernando Westfalen e Walmor  Jacques da Agencia MPM pediram autorização para sincroniza-la num vídeo comercial para o Natal, e a canção estourou. Até hoje é a mais conhecida e querida das minhas músicas.


No ano anterior, me aventurei no festival regionalista chamado Califórnia da Canção, na cidade de Uruguaiana. Com Aires Potthoff, Tenison Ramos e Geraldo Flach, fizemos uma linda apresentação no Cine Pampa, muito aplaudida pelo público. Para tomar um refresco de ar, logo saí para o saguão. Ali me abordou um casal bem bonito, muito bem vestidos com aquelas jaquetas de couro uruguaias usuais entre o pessoal pudente da fronteira. O cavalheiro me diz:


“ - Tua música é de longe a mais bonita de todas as apresentadas...mas com essa mensagem da letra, aqui em Uruguaiana, nuuuuunca vais ganhar o concurso”.   Suponho que o trecho maldito era; “...quero só um pedaço de terra...”.


Sabias palavras, às quais não dei muita atenção. Em minha ingenuidade de recém-voltado após 10 anos de exterior, não podia supor que houvesse fatores não artísticos nas escolhas dos jurados de um mero evento musical.  O resultado foi certeiro: o tema nem sequer foi indicado para voltar a ser apresentado na noite das finalistas, nem no disco ficou. Agora em 2021, tem mais de 30 gravações em 4 idiomas, incluindo Mercedes Sosa, Nair Terezinha, Osvaldir & Magrão, Renato Borghetti & Chaloy Jara.


Daniel Wolff armou os arranjos para a versão 2021 deste Pealo (pealar é laçar pelas patas, algo a que não se pode resistir), com diferentes técnicas violonísticas onde expõe seu virtuosismo como instrumentista e como arranjador. Fugindo de certa repetição que impregna as 4 estrofes do tema, ele abre com dois solos em diferentes modos-expressões técnicas; novamente no meio do fonograma, se faz uma variação melódica e harmônica buscando acrescentar interesse e frescor na música. Também os vocais finais trazem novidade e emoção, em simbiose com a letra otimista sobre um futuro sonhado.

...

Copio trecho do livro “Nas Velas do Violão”:  

 

“Tem certo tipo de canção que vai sendo gestada lentamente lá dentro da gente, sem esboço, sem escrita, sem anotação para lembrar depois. Quando brota, sai feita, sai pronta e inteira, pois sua alma vinha germinando com rumo certo. Assim parece que foi com Pealo de Sangue, nascida num repente único, sentado em minha cama às 3 horas da tarde na rua Tito Lívio Zambecari, em 1979. Todinha, todinha, sem vacilo, sem correção, brotou a canção. Quando ainda estava na Argentina, havia feito um tema que se frustrou. Tratava dos meus avós Frida e Jacob, de origem alemã, que haviam emigrado do interior para a capital, com alusões à enxada, à vida na encosta do Cerro do Botucaraí. Talvez ali estivesse a origem da nova canção. No exílio, entendi que o migrante tem uma carga de tristeza que é absoluta, faz parte do ar que ele exala. Na verdade, reflete a perda de si mesmo. Ao construir sua nova vida, ele vive sonhando e refazendo algo que não voltará. Quer abrigo, morada, identidade, pão, que serão sempre outros, distintos daqueles que ele deseja por atavismo. Por isso pergunta quando será este sonho. O mistério de seu coração é sua própria tristeza, é seu proprio sonho, cal e cimento de seu novo dia. Já na primeira estrofe aparecem lado a lado as palavras “colono” e “gaúcho”, o que destoa da temática trivial gauchesca onde não existe colono, assim como nela inexiste a citação ao Guaíba. A partir de uma alusão à “melancolia” açoriana, a canção se espraia num enfoque bem rio-grandense, quem sabe derivando na direção de meus avós Laíla e Antônio, missioneiros que também migraram para a capital. Sendo os quatro avós migrantes por falta de terra, me tocou dizer, talvez pela voz calada deles, “quero só um pedaço de terra”.

 

Começando duvidoso, com uma pergunta, vai o texto tomando coragem e ficando afirmativo para pedir terra, casa, colheita e chegar a dizer que haverá um novo dia. Alcança a atribuir importância aos sonhos inspirados nas estrelas. Numa alusão à participação política, diz que este futuro dependerá do esforço de cada um, não cairá do céu. A percepção sensorial se destaca com o cheirinho da mata, a luz do luzeiro e o insignificante e importantíssimo cutuco do lambari na perna, figura poética que repetidamente segue sendo comentada pelos meus amigos como o grande achado do texto. Pois agora, o belisco do lambari... Como esta toada tem as quatro estrofes baseadas numa mesma e modesta estrutura preparada para seis versos, sua melodia vai a cada uma das vezes sofrendo pequenas variações que permitem acomodar a letra e lhe agregam novidade e fogem do óbvio. Nem sequer uma parte B esta canção tem. Dá assim para entender como e porque foi feita de uma só sentada, sem muitas reflexões. Seu pontinho de originalidade está nos compassos 11 e 12 de cada estrofe, quando vem harmonizada sobre o sexto grau rebaixado com sexta (Si bemol 6), seguido do segundo grau rebaixado com sexta (Mi bemol 6), e uma brevíssima diminuta de Mi natural para aceder de volta à dominante do tom original. Pedi a meu antigo professor do Centro Livre de Cultura, o violonista Zé Gomes, que escrevesse o arranjo, fugindo da monotonia das estrofes reiterativas. Após uma primeira exposição genérica da canção, assim foi como se fizeram constantes modulações, passando por quatro tonalidades. Se introduziu um corus de vocalize, quase como um solo, ficando o conjunto do fonograma apoiado no quarteto de cordas, nas trompas, no trio vocal, na harmônica e no violão de 12 cordas em busca de uma variedade de timbres. Merece destaque a interpretação vocal de Nana Chaves, dando uma cor toda especial ao tema. Relegada a um final de lado no disco original, Pealo de sangue foi colocada por Fernando “Judeu” Westphalen na propaganda televisiva de uma rede de lojas, com imagens muito sugestivas. Tornou-se conhecida, foi sendo gravada por outros intérpretes, terminou sendo escolhida uma das “dez mais” em concurso da mídia regional.

 

Teve duas gravações de Mercedes Sosa (português e castelhano), tem versões em alemão e italiano, alcança mais de 30 edições fonográficas, inclusive instrumentais e sertanejas, é favorita de corais comunitários. Na época da seleção musical para seu disco e xou Saudades do Brasil, Elis Regina a tinha copiada manuscrita em uma cadernetinha de bolso, ao lado de Moda de sangue, de Ivaldo Roque e Jerônimo Jardim, para incluir no repertório. Por achar que havia demasiado sangue nas duas, seu diretor optou apenas pela Moda.        


A letra diz:  “Que mistérios trago no peito / Que tristezas guardo comigo / Se meu sangue é colono, é gaúcho / Lá no campo é que encontro abrigo / O  cheirinho da chuva na mata  / Me peala me puxa pra lá / Quero só um pedaço de terra / Um ranchinho de santa-fé / Milho verde, feijão, laranjeira / Lambari cutucando no pé / Noite alta o luzeiro alumiando / Um gaúcho sonhando de pé / Quando será / Este meu sonho / Sei que um dia será novo dia / Porém não cairá lá do céu / Quem viver saberá que é possível / Quem lutar ganhará seu quinhão / Velho Rio Grande / Velho Guaíba / Sei que um dia será novo dia / Brotando em teu coração / Quem viver saberá que é possível / Quem lutar ganhará seu quinhão!” 


*Enviado pelo Autor por e-mail para este blogueiro. 

**Vídeo via YouTube

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