Da exploração da terra à expulsão de povos dos territórios, filósofa denunciava barbárie presente até hoje na sociedade
Por Nara Lacerda*
Poucos meses antes de sua morte (em 15 de janeiro de 1919), a filósofa e economista marxista Rosa Luxemburgo publicou um artigo no jornal alemão Die Rote Fahne (A Bandeira Vermelha) em que pedia uma reforma do sistema judicial e chamava atenção especialmente para as condições prisionais. O tema, atualíssimo em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, foi abordado por ela há mais de 100 anos, em novembro de 1918. Alguns dias antes da publicação, Rosa Luxemburgo havia sido libertada de um longo período presa pela defesa do socialismo e de trabalhadores e trabalhadoras.
“Agora estão todos em liberdade. Estamos novamente em fila, prontos para o combate. (…) Contudo, outra categoria de habitantes infelizes desses edifícios lúgubres foi completamente esquecida. Ninguém pensou até agora nos milhares de figuras pálidas e macilentas que definham anos a fio atrás dos muros de prisões e penitenciárias expiando crimes comuns”, escreveu.
No mesmo texto, Rosa Luxemburgo afirma que o sistema penal alemão estava “profundamente impregnado de um brutal espírito de classe e da barbárie do capitalismo”. Não foi a primeira vez que a pensadora relacionou a violência à essência e à própria sobrevivência do capitalismo e tocou em pontos que dialogam diretamente com os dias de hoje. Ela considerava que a guerra era inseparável do regime de acumulação de capital, assim como a invasão e aniquilação de povos, expressa no colonialismo e na exploração de recursos em países com menor poder econômico.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Isabel Loureiro, professora aposentada do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual Paulista e colaboradora da Fundação Rosa Luxemburgo, aponta que essa percepção é um dos pontos mais atuais do pensamento da filósofa. “A grande atualidade dela está nesta análise que ela faz no livro 'Acumulação do Capital' de que, assim como a guerra é inerente ao capitalismo, a anexação de território também é. A busca por colônias e o colonialismo fazem parte do capitalismo”.
A pensadora marxista também apontava que, para continuar se desenvolvendo, o capitalismo precisaria criar mercados em outras nações. No contexto da época, Luxemburgo citava a colonização dos Estados Unidos, a dominação de países no continente africano e o controle de territórios na China, nos séculos 18, 19 e 20. Mas essa análise também conversa profundamente com a atualidade e ainda pode ser vista no poder que os países do Norte Global exercem sobre as decisões internacionais, os conflitos e as guerras.
“É extremamente convincente e extremamente atual. Inclusive ela diz que o que Karl Marx chamava de acumulação primitiva, e a violência inerente à acumulação primitiva, continuava”, ressalta Isabel Loureiro. A professora conta que, em 2005, o antropólogo e geógrafo britânico David Harvey revisitou esse pensamento no livro O Novo Imperialismo, em que usa o termo acumulação por despossessão ou por expropriação.
Loureiro aponta esse como mais um elemento do pensamento de Rosa Luxemburgo que se expressa na realidade até hoje, mais de um século após a morte da filósofa. “Podemos até dar outra palavra, mas essa relação de opressão entre a metrópole e a periferia, o sul global e o norte global – como é a terminologia usada hoje – continua presente. Com elementos novos, o velho colonialismo continua presente.”
Como exemplos, a professora traz questões que estão colocadas na ordem do dia para garantia do futuro da própria humanidade e do planeta. “A anexação territorial das mais variadas maneiras, para explorar elementos da natureza em territórios, a mineração, a floresta abatida para ser substituída para criar gado. E tem o colonialismo interno. Se pensarmos no caso do Brasil, como se trata a Amazônia, o Cerrado, os povos ancestrais.”
Rosa Luxemburgo nasceu no ano de 1871 em uma família judia, na região da Polônia que era dominada pelo império czarista (monarcas da Rússia). Ela conviveu com a violência cotidiana de um regime sem direitos a trabalhadores e trabalhadoras, sem liberdade de imprensa e religião e sem garantias de direitos básicos. Na infância, não podia falar o idioma nativo na escola e presenciou ataques violentos contra a comunidade judaica, pautados pelo antissemitismo.
Ainda na adolescência, se juntou à luta dos trabalhadores e trabalhadoras no Partido Proletário. Defensora incondicional da democracia, considerava que qualquer mudança ou revolução só ocorreriam com protagonismo popular. Foi presa diversas vezes, a última delas na Alemanha, em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial. Após o fim do conflito, Rosa Luxemburgo foi solta, mas era considerada um risco. Foi perseguida por milícias e alvo de uma rede de espionagem com a conivência de membros do Partido Social Democrata. Rosa tinha sido integrante do partido, mas se desfiliou após a legenda apoiar a participação da Alemanha na Primeira Guerra.
A caçada terminou com o assassinato da filósofa, em 1919, gestado e executado por personagens que iriam integrar o regime nazista posteriormente. “Os assassinos foram considerados heróis e, mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, não foram incomodados”, conta Isabel Loureiro.
Nos últimos anos em que esteve presa, Rosa Luxemburgo escreveu diversas cartas. Nos textos falava de temas do cotidiano do cárcere e também de assuntos que estudava, que não se limitavam à política. Por décadas, ela catalogou centenas de plantas e guardava o inventário botânico na prisão, com exemplares preservados das espécies. O interesse pela natureza está expresso em uma das cartas, endereçada à amiga Sophie Liebknecht, em que Rosa Luxemburgo descrevia especial gosto pela leitura de obras sobre ciências naturais, geografia das plantas e dos animais.
“Ontem eu estava justamente lendo sobre as causas do desaparecimento das aves canoras na Alemanha: é o crescente cultivo racional dos bosques, dos jardins e da lavoura que lhes destrói pouco a pouco as condições naturais de nidificação e alimentação: árvores ocas, florestas virgens, matagais, folhas murchas no chão dos jardins. Doeu-me tanto ler isso. Não pelo que o canto significa para as pessoas, foi a imagem da silenciosa, incontível decadência dessas pequenas criaturas indefesas que me provocou tanta dor ao ponto de me fazer chorar”.
No mesmo trecho, ela faz uma conexão, ao mesmo tempo objetiva e profunda, com o extermínio de povos originários nas colônias, citando o exemplo das comunidades indígenas dizimadas no território invadido pela Inglaterra e que viria a se tornar os Estados Unidos.
“Exatamente da mesma maneira foram eles expulsos pouco a pouco de sua terra pelos homens civilizados e entregues a uma decadência muda, cruel. Mas é claro que devo estar doente para que tudo me abale tão profundamente. Ou então, sabe de uma coisa? Tenho às vezes a sensação de não ser verdadeiramente um ser humano, e sim algum pássaro ou outro animal em forma humana malograda”.
*Edição: Raquel Setz - Via Brasil de Fato
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