*Para o amigo Holte Ramos de
Oliveira (Didi), companheiro e protagonista deste poema; para o amigo Danilo Nunes
Neto, protagonista e grande companheiro de viagem.
Entre um gole e outro e
descobrindo a nós e ao mundo
entre um gole e outro de
uisque com campari
e degustando a noite
abrigados
no seio da Barbarella
Entre um gole e outro
e o xis completo
e Guevara com seu diário
ensanguentado
e as revoluções que
articulávamos
e que necessitávamos fazer
no país
no Mundo
e em nós mesmos
Entre um gole e outro
e muitos mais
e muitos porres etílicos
e mentais
Meu amigo e eu e às vezes
meia dúzia mais de convivas
divagando seriamente ou só
matando o tempo
nas mesas do bar simplório
mas tão aconchegante
ponto de encontro dos jovens
notívagos interioranos
Noites longas que passavam
tão rápidas
no seio da Barbarella
jovens curiosos/audaciosos
preocupados ou não
com as questões do Espírito
e do Corpo
e alguns com o povo sofrido
e suas mazelas
Jovens estudantes entupidos
de sonhos e às vezes
de xis & uisque com
campari
no seio caliente do
Barbarella
II
Enquanto nas selvas de pedra
das metrópoles
ou nas selvas expessas do
Araguaia
alguns combatiam e muitos
sucumbiam
e nem imaginávamos a forma
e de como se deram
seus estertores gloriosos
heróicos e obscuros
e a imprensa amordaçada ou
cúmplice contribuia com a noite escura
que cobria o país
e de quase nada sabíamos
Enquanto a maioria
precupava-se com sua vidinha
sem sentido parasita egoista
e barata
novelas futilidades e
futebol aos domingos
Enquanto na calada da noite
padres e freiras e artistas
eram sequestrados
e operários e estudantes
resistindo
ou sucumbindo na
clandestinidade e na tortura
a Guerra intestina insana e
desigual
& o outro brasil
dormindo às margens plácidas
sem escutar o brado
retumbante
das vítimas civis trucidadas
nos subterrâneos funéreos
doentios das câmaras
medievais verde-olivas
Enquanto em outro extremo do
Planeta as rubronegras & infernais
bombas e metralhas
covardemente lançadas pelo império
rechedas de ódio e napalm
traziam o caos queimando a
Terra
e as Carnes inocentes
chamas humanas correndo
desesperadas em My Lai
E a fome & a Miséria
reinando absolutas & trágicas
no Terceiro Mundo Negro
Amarelo Mestiço
Ameríndio
e o os mesmos de sempre
banqueteando-se
com o suor e o sangue de
suas vítimas
(acusadora culpa pairando
incisivamente no Espaço e no Tempo)
III
Noites de boemia
noites de Barbarella
período de gincanas bailes
de formatura
amor/paixão às vezes
arrasadoras e muitas outras
não correspondidas
& o tédio inquietando a
alma
& os caminhos chamando
ao desafio
do conhecimento & da
aventura
as viagens de carona
os flagêlos
as buscas
estradas tortuosas
trilhas na serra
rotas do mar
as areias de Tramandaí
acampamento hyppie barracas
coletivas
solidariedade &
cumplicidade
nas rochas de Torres & o
mar & a lua
& e sol escaldante por
testemunha
a feira de malucos na praça
central de Curitiba
as selvas de pedra
paulistanas e depois
a emoção de conhecer o Rio
Copacabana Ipanema Leblon
a Barra como destino e
rudimentar e perigoso abrigo
noturno
A volta dificultuosa
fome e frio nas estradas
chuvosas
incipiente maturidade
forjada na rebeldia e
no sofrimento
E tudo isso acontecendo
dia-a-dia que representavam
meses eternos
anos que pareciam congelados
a impaciência juvenil
elevada
à máxima potência
Condores sobre os Andes
Roncinantes oferecendo
parceria para
o desafio
das estradas longas e
misteriosas
promessas de aventuras
e o enorme mundo a descobrir
IV
'Companheiro, quem
responderá nossas perguntas
nossas dúvidas atrozes que
machucam
que subvertem a lógica
conhecida
que torturam o corpo
& a alma
e que
como uma peste profana
atemporal
quase destroem nossas
incipientes e frágeis
certezas outrora absolutas?
Onde encontrar o Fio da
Meada da Verdade?
onde estará o Começo do
Caminho?'
V
Entre um gole e outro e
buscando descobrir
as Verdades tão palpitantes
e latentes
trocando nas geladas noites
de julho
o aconchego dos lares
aquecidos
pelas intempéries das ruas
molhadas pelo orvalho
e fustigadas pelo minuano e
pela indiferença
geral
Meu amigo e eu e às vêzes
mais
meia dúzia de jovens
camaradas
ou curiosos observando ou
mesmo participando
de nossas parcas e
imprecisas (mas cruciais)
discussões filosóficas/políticas/enciclopédicas
discussões filosóficas/políticas/enciclopédicas
- sem ainda termos cruzado as
Fronteiras dos Limites
- sem ainda termos comido o
pó das Estradas do Inferno
- sem termos ainda sofrido o
bastante e sabido
o quanto haveríamos e
poderíamos
ainda suportar
VI
Assim aconteceu nos chamados
'verdes anos'
nem tão distantes - assim
parece, agora -
meu amigo e eu
entre um gole & outro
de uisque com campari e
discutindo
poesia/política/aventuras
& rock in roll
naqueles idos de 70
descobrindo a Nós e ao Mundo
sob o olhar cúmplice e
curioso
da insinuante
& meiga garçonete morena ...
(Sonhos & paixões
& meiga garçonete morena ...
(Sonhos & paixões
nas trilhas
nas estradas
nos corações & mentes
e nas mesas do Barbarella).
Júlio Garcia, in Cara & Coragem - Poemas - 1995.
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