18 setembro 2023

O julgamento do 8 de janeiro precisa colocar os militares golpistas na cadeia

Julgar os terroristas no STF é apenas o primeiro passo. Para destruir o golpismo, é preciso também condenar a alta patente das Forças Armadas que incitou o ato.



Por João Filho*

DEZESSETE ANOS DE PRISÃO. Essa foi a pena dada ao golpista Aécio Lúcio Costa Pereira,  primeiro a ser condenado na última quinta-feira pelo STF. A condenação se deu por dano qualificado, deterioração de patrimônio público tombado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e associação criminosa. A maioria dos ministros concordou com o voto do relator Alexandre de Moraes que, além da pena de prisão, aplicou uma multa de R$ 30 milhões em  danos morais coletivos — valor a ser pago em conjunto com outros condenados no julgamento. 

A punição é dura, mas compatível com a gravidade:a tentativa de solapar a democracia brasileira. Depois de Aécio, outros dois golpistas foram condenados pelos mesmos crimes e receberam penas parecidas. Essas primeiras condenações têm caráter histórico e pedagógico, já que pela primeira vez se puniu com rigor os delinquentes que conspiram contra a democracia. A anistia concedida aos golpistas de 1964 é a responsável direta pelos atos golpistas de 8 de janeiro. As condenações desta semana indicam que este ciclo finalmente pode ser quebrado. O recado aos golpistas do futuro está dado. Ao todo, 1.390 pessoas estão sendo acusadas pelos atos golpistas de 8 de janeiro. A coisa está só começando. 

O julgamento foi marcado por debates calorosos entre ministros bolsonaristas e ministros democratas. Kassio Nunes cumpriu o seu papel de vassalo do golpismo e tentou desconsiderar o caráter golpista do episódio para enquadrá-lo meramente como um ato de vandalismo. Mendonça seguiu mais ou menos o mesmo caminho, absolvendo os réus pelos crimes relacionados ao golpismo e condenando pelos crimes de vandalismo. Assim como prega a militância bolsonarista, Nunes e Mendonça defenderam a tese estapafúrdia de que o 8 de janeiro foi uma manifestação pacífica, familiar, democrática, que saiu do controle por conta de meia dúzia de manifestantes mais empolgados. Tratam o acontecimento como algo desconectado de outros episódios golpistas, como a tentativa de invasão da sede da Polícia Federal que incendiou carros e ônibus e a tentativa de atentado à bomba no aeroporto de Brasília — ações que foram comprovadamente organizadas nos acampamentos nos quartéis.

Não há dúvidas de que todos esses episódios estão ligados entre si e foram motivados pela expectativa da aplicação da Garantia da Lei e da Ordem, a GLO, para conter o caos através de uma intervenção militar. Esse roteiro está fielmente descrito na minuta do golpe encontrada na casa do ex-ministro Anderson Torres. O desejo por uma intervenção militar sempre foi declarado pelos golpistas. Durante a invasão do 8 de janeiro, o próprio Aécio publicou um vídeo nas redes sociais vestindo uma camisa com os dizeres “intervenção militar federal”. Tratar o assunto como se fosse um “domingo no parque” que fugiu do controle, como lembrou Alexandre de Moraes, é negacionismo puro.

A anistia concedida aos golpistas de 1964 é a responsável direta pelos atos golpistas de 8 de janeiro.

Como se já não bastasse o vexame dos ministros bolsonaristas, os advogados de defesa dos golpistas protagonizaram um show de horrores. A começar pelo advogado de Aécio, Sebastião Coelho da Silva, que já estava errado mesmo antes de abrir a boca. No final do ano passado, ele discursou em uma das manifestações golpistas em pleno quartel general e pediu a prisão de Alexandre de Moraes, o que motivou uma abertura de investigação do CNJ por incitação aos atos golpistas. Ou seja, o advogado do golpista é um golpista. Durante seu discurso, ele simplesmente abandonou a defesa técnica e adotou uma postura afrontosa ao Supremo, afirmando que o julgamento é político e que os ministros são as pessoas mais odiadas do país. Ao invés de argumentos técnicos em defesa do seu cliente, o que se viu foi proselitismo político de quem quer jogar pra torcida bolsonarista. Tudo isso cheira à uma preparação de terreno para se lançar na política em um futuro breve. Mas isso só será possível se o advogado não tiver que sentar no banco dos réus antes. 

O golpista Aécio foi pintado pelo advogado como um pai de família, trabalhador, que só quer o bem do Brasil. Mas o seu histórico aponta em direção contrária. Após as últimas eleições, um vizinho abriu boletim de ocorrência contra ele depois de ter sido ameaçado de morte pelo Whatsapp. A mensagem dizia que ele “seria morto, porque todo comunista merece morrer”. Esta é a postura deste patriota pai de família: ameaça de morte, de golpe e destruição do patrimônio público. 

Os advogados dos outros dois réus condenados seguiram a linha do colega que defendeu Aécio. Ignoraram os aspectos técnicos do julgamento e atuaram como militantes bolsonaristas indignados com uma fictícia perseguição política. O descaramento dos advogados abunda como as provas existentes contra seus clientes. Impossibilitados de confrontarem as fotos, os vídeos e os áudios que comprovam os crimes dos réus, apelaram para os discursinhos bolsonaristas dos mais chulés. Parece que todos eles estão ensaiando para virar parlamentares de extrema direita. 

A pobreza intelectual dos advogados ficou evidente durante o julgamento. Um dos advogados confundiu “O Pequeno Príncipe”, um livro infantil de Antoine de Saint-Exupéry, com o “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel, uma obra fundamental da teoria política. Pior que isso: ele queria citar uma frase de Maquiavel que jamais foi escrita por ele. Alexandre de Moraes não deixou barato e colocou o advogado em seu devido lugar: “É patético e medíocre que um advogado suba à tribuna do STF com um discurso de ódio, um discurso pra postar depois nas redes sociais (…) O advogado ignorou a defesa. Não analisou nada, absolutamente nada. (…) Esqueceu o processo e quis fazer média com os patriotas. Realmente é muito triste.”

Os executores do golpe começam a sentir o peso da lei numa democracia. Ainda faltam os financiadores, os organizadores e os mentores intelectuais.

O que vimos esta semana foi uma resposta importante da sociedade brasileira contra o golpismo. Os executores do golpe começam a sentir o peso da lei numa democracia. Ainda faltam os financiadores, os organizadores e os mentores intelectuais. Para blindar a democracia, é fundamental que esses outros grupos também sejam rigorosamente punidos. Durante o julgamento, Alexandre de Moraes ressaltou que as Forças Armadas não aceitaram aplicar o golpe — uma fala que me preocupa um pouco. Está mais do que evidente que o golpe só não foi concluído por não haver as condições materiais necessárias. Não havia apoio do governo dos EUA, nem de parte significativa do grande capital brasileiro. Mas o golpe foi fustigado o tempo todo pelo presidente e pelos militares. 

É fato incontestável que foi o alto comando do exército que permitiu que os acampamentos golpistas acontecessem em seu quintal. O 8 de janeiro não seria possível sem o apoio estrutural e intelectual das Forças Armadas. Não basta prender apenas os civis golpistas. É preciso colocar os militares de alta patente na cadeia para que eles nunca mais ousem sair da caserna para atormentar a democracia.

*João Filho é cientista social e jornalista. Autor do Jornalismo Wando - Via Intercept Brasil

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