A esquerda necessita reagir, tem de se apresentar diferente, tem de ter a radicalidade sem a qual não é esquerda.
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Por Céli Pinto (*)
No atual processo eleitoral, há dois casos aparentemente muito distantes, mas que dividem características comuns: as eleições para prefeito nas cidades de São Paulo e Porto Alegre. Não vou tomar em consideração, por estranho que possa parecer ao leitor e à leitora, a figura estrambólica de Pablo Marçal, ou a tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, que foi particularmente grave na cidade de Porto Alegre.
Minha hipótese é que a difícil situação em que se encontram as candidaturas de esquerda nas duas cidades – estou me referindo a Guilherme Boulos e Maria do Rosário -, é que não existe polarização. Ao contrário da gritaria da grande mídia contra a polarização, o que acontece é exatamente o contrário.
De um lado se construiu, ao longo dos anos (diria da última década), um bem azeitado discurso de extrema-direita autoritário, que foi empurrando para o cantinho o projeto democrático de esquerda, a partir de temas absolutamente dispersos, sempre o associando à corrupção (mesmo quando houve importantes protagonistas entre políticos da direita e de extrema-direita) e ao comunismo, seja isto o que for.
A esquerda aceitou sem titubear o modelito muito bem construído pela direita e passou para a defensiva. Boulos, outro dia, em entrevista no programa Roda Viva da TV Cultura, posou tanto de bom menino que podia muito bem ser um candidato do PSDB; no Rio Grande do Sul, a campanha de Rosario luta para parecer bem comportada e busca de uma classe média ilustrada para dar palpite fora de hora sobre “a Porto Alegre que quero morar”.
Ninguém do campo da esquerda deixará de votar no Boulos em São Paulo, ou na Rosário em Porto Alegre, mas isto não ganha eleição. O que é preciso é desdemonizar a luta política, o antagonismo, a identificação de posições políticas entre contrários. Isto é democracia. Até Trump e Harris, que andam de mão dadas na despudorada política externa do império do norte, parecem ao eleitor estadunidense mais polarizados, mais alternativos um ao outro do que o ataque de psdebismo da esquerda brasileira, com medo de eleitor conservador. Esta ideia de que o brasileiro é conservador por natureza é completamente estúpida, para dizer o mínimo.
Não há essencialidade no eleitor conservador, há de um convencimento, há um trabalho de interpelação de um povo que ficou à deriva, enquanto a esquerda se amedrontava frente a desfaçatez do ex-juiz de Curitiba A esquerda necessita reagir, tem de se apresentar diferente, tem de ter a radicalidade sem a qual não é esquerda. Esta radicalidade precisa ser popular e democrática. Deve ser alternativa ao discurso obscurantista que, nos casos dos candidatos do MDB das cidades de São Paulo e Porto Alegre, Ricardo Nunes e Sebastião Melo, é completamente oportunista. Ou a esquerda se apresenta com a ideologia que a constitui como tal, ou fica a reboque de uma ideologia de feições fascistóides, tentando provar que não é tão perigosa, que não ameaçara os princípios conservadores dos bolsonaristas, raízes ou de ocasião.
A questão fica ainda mais séria para os candidatos do sudeste e do sul, como os dois que estão em pauta. Nas duas cidades, os mais pobres votam mais à direita (ainda que sempre se tenha pensado que o nordeste era petista porque era mais pobre). Em Porto Alegre, 43% do eleitorado de Melo tem até o ensino fundamental e 35% ganham até 3 salários mínimos. (Pesquisa Quaest, publicada em 27/08/2024)
Mas o dado mais assustador desta última pesquisa é que apenas 62% dos eleitores que votaram em Lula em Porto Alegre (e Lula ganhou na capital) votariam em Maria do Rosário. Parece que alguma coisa está se desmanchando no ar. Mas há tempo de radicalizar.
(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS
-Fonte: Sul21
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