Governo interino não precisou de 100 dias. Bastou a primeira edição extra do Diário Oficial da União para anunciar o recuo em ações afirmativas que levaram décadas para ser construídas
por Luciano Velleda para a RBA*
Alexandre Moraes na Justiça, Etchegoyen no GSI, Fátima na Política para Mulheres. Governo errado, pessoas erradas
São Paulo - A temática das mulheres, dos direitos humanos, da juventude e dos negros no governo interino de Michel Temer precisou de apenas algumas horas para sofrer um forte revés. No mesmo dia em que o Senado decidiu pela abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 12 de maio, Temer mandou rodar uma edição especial do Diário Oficial da União com a nova configuração da esplanada dos ministérios.
Sem delongas, o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos foi extinto, transformado em secretarias sob a aba do Ministério da Justiça. Em poucas horas, uma histórica conquista dos movimentos sociais perdeu protagonismo, importância e voz.
Menos de 30 dias depois, o Ministério da Justiça publicou a Portaria nº 611/2016. Com ela, o governo interino completou o serviço ao engessar as demandas relacionadas à Secretaria Especial de Direitos Humanos. A portaria, assinada pelo ministro Alexandre de Moraes, em seu Artigo 1º determina: “Ficam suspensas, por noventa dias, as delegações de competência relativas à celebração de contratos, convênios e instrumentos congêneres, a nomeação de servidores, a autorização de repasses de quaisquer valores não contratados, a realização de despesas com diárias e passagens, e a realização de eventos, no âmbito do Ministério da Justiça e Cidadania”.
A decisão esvazia serviços e programas e impede o funcionamento dos órgãos colegiados que reúnem governo e sociedade civil no diálogo para a elaboração de propostas. Ficam sem condições de atuar programas como o de Proteção a Vítimas e Testemunhas, de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte e a Implementação do Sistema Socioeducativo.
O documento deixa de fora dessas restrições as operações e atividades da Força Nacional de Segurança Pública, às ações de preparação e mobilização para a realização dos Jogos Olímpicos de 2016, o cumprimento de decisões judiciais, à execução do orçamento impositivo e a gestão da folha de pagamento de pessoal.
No parágrafo único, a Portaria 611/2016 determina que “a liberação de recursos financeiros para a execução de convênios e instrumentos congêneres ficará condicionada à autorização do Ministro de Estado da Justiça e Cidadania”. A seguir, o Artigo 2º reforça os plenos poderes do ministro – conhecido por seu pouco apreço à cidadania –, ao estabelecer que ele “poderá, durante o período de suspensão, autorizar a realização dos atos referidos no art. 1º”.
Em outras áreas, o governo interino igualmente não demonstra receio em afrontar os direitos humanos. É o caso da nomeação do general Sérgio Etchegoyen para chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Filho do general Leo Etchegoyen, incluído na lista de 377 agentes do Estado responsáveis por crimes durante a ditadura, Sérgio Etchegoyen foi o único general da ativa que criticou publicamente o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, apresentado em dezembro de 2014.
Políticas para mulheres
A montagem do primeiro escalão do governo interino sem a presença de mulheres e negros foi, desde o primeiro momento, indício inequívoco do que viria pela frente. Criticado, Michel Temer tentou remendar a situação nomeando a professora Flávia Piovesan para a Secretaria Especial de Direitos Humanos, Silvia Marques para a presidência do BNDES e Fátima Pelaes para a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
Se Flávia Piovesan, conhecida e respeitada por sua luta na defesa e promoção dos direitos humanos é, para muitos, a pessoa certa no governo errado, Fátima Pelaes é pessoa errada condizente com o governo errado. Ex-deputada federal (PMDB-AP), Fátima é contra a descriminalização do aborto – inclusive em casos de estupro, permitido por lei no Brasil. Evangélica, diz não levantar “bandeiras contrárias aos valores bíblicos”.
Nomeada dias depois do caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro, ela viu o governo criar, como reação ao fato que revoltou o país, o Núcleo de Proteção à Mulher fora da estrutura da secretaria que comanda. Um sinal do esvaziamento da pasta, apesar de a secretária ser integrante do grupo.
Reflexos desse contexto desfavorável já são visíveis: o Prêmio Construindo Igualdade de Gênero ainda não teve inscrições abertas e está fora do cronograma; o Programa Pró-equidade de Gênero e Raça igualmente está sem cronograma; convênios foram cancelados por total desconhecimento dos encaminhamentos que deveriam ter sido feitos; a implementação das Diretrizes Nacionais para enfrentar o Feminicídio (que vai além da segurança pública) não tem o acompanhamento do governo federal, além da ausência de monitoramento e acompanhamento da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.
Igualdade Racial
A extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos e a incorporação das competências da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) ao Ministério da Justiça e Cidadania, resultaram na redução de sua estrutura e condições de operar e articular programas e ações.
Um dos principais programas relacionados com a Seppir, por exemplo, chama-se Juventude Viva. O objetivo é reunir ações de prevenção para reduzir a vulnerabilidade de jovens negros e de periferia à violência física e simbólica. Considerando que grande parte dessa violência é cometida pelas forças policiais, e que o atual ministro é conhecido por seu gosto em reprimir movimentos sociais e por não ter contido a violência da PM paulista quando era secretário de Segurança, não é difícil imaginar qual o futuro do Juventude Viva sob o comando maior de Alexandre de Moraes.
Cem dias depois, o que começou ruim, segue ruim. E pode piorar.
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