A atuação “fenomenológica” do noticiário oculta a construção social da realidade, como se eventos climáticos extremos não tivessem historicidade.
Foto: Isabelle Rieger/Sul21Por Luiz Marques (*)
O balanço da catástrofe que se abateu sobre o Rio Grande do Sul não sai na televisão. Não obstante, está na ponta da língua dos contribuintes no que toca a gestão administrativa estadual e da capital gaúcha. Em ambas as instâncias, a conduta negacionista dos gestores é reprovada, pelas centenas de alterações na legislação ambiental em prol da autofiscalização empresarial e a falta de manutenção nas comportas do Muro da Mauá, casas de bombas e diques. O negacionismo configura um “crime de responsabilidade” à espera de elucidação. Os mandatários foram desleixados com a “segurança interna” das jurisdições. Como no samba de Noel Rosa: “Meu Deus do céu, que palpite infeliz”.
Os prejuízos econômicos (patrimoniais), sociais (empregos, moradias, escolas, hospitais), culturais (teatros, cinemas, laços identitários) e emocionais (perdas de relíquias, fotos) afetaram 2 milhões de concidadãos em 467 municípios, num total de 497. Em maio, 600 mil pessoas ficaram desalojadas, 40 mil tiveram os domicílios destruídos. Desnecessário dramatizar a dor. “Nem rir, nem chorar, mas compreender”, diz o filósofo. A pergunta é: por que os governantes, com ar blasé sobre mecanismos de cuidado da natureza e das cidades, cederam à incúria e desprezaram o bem comum? Soberba?
Resposta: seu “modelo de sociedade” centra-se no livre mercado e na acumulação capitalista. O carro-chefe do futuro é a empresa privada. O Estado é o obstáculo. Privatizam empresas públicas, ainda que prestadoras de serviços essenciais para a população (água, luz, gás, transporte coletivo). Se a questão não entra em discussão, é que o objetivo dos meios de comunicação – descontada a autopropaganda – não é informar. Mas satisfazer os patrocinadores, com destaque para as finanças. Daí a oscilação que vai da espetacularização dos fatos até a sentimentalização apelativa. Qualquer coisa, desde que impeça o trabalho do pensamento crítico. Consumidores servem apenas de álibi.
A atuação “fenomenológica” do noticiário oculta a construção social da realidade, como se eventos climáticos extremos não tivessem historicidade. A enchente converte-se em um rótulo – catástrofe, tragédia. “Não é hora de buscar culpados”, rezam os que têm culpa. Os veículos de comunicação fazem da dissimulação um decreto divino e, a não ser superficialmente, evitam o assunto. O slogan “Pra Cima, Rio Grande” eclipsa os responsáveis pela tempestade no paraíso (neoliberal). Ao mesmo tempo, promove o boicote às ações positivas do governo federal para o bem-estar de todas e todos.
Para se ter ideia, o grupo RBS divulga 126 casas provisórias na Região Metropolitana com loas ao governo estadual, e cutuca o presidente Lula contrário à medida de curta duração. A paralisia das autoridades locais em elencar imóveis até R$ 200 mil para aquisição pela Caixa Econômica Federal cruza incólume. Dia seguinte (5/07), num canto do jornal Zero Hora, insere a boa nova do ministro Extraordinário Para Reconstrução do RS, Paulo Pimenta, sobre 2 mil casas compradas pela União para entrega em julho; e 5 mil já cadastradas para aquisição pela CEF. As prefeituras, por igual, não são admoestadas sobre terrenos para construção de casas aos atingidos. A imprensa canta longe do ninho. Compreender é desmascarar a aporofobia da pantomima corporativa para isentar o sistema.
A disputa de modelos
Nas práticas de dominação, dois campos são fundamentais – o político e o institucional – para uma consolidação do status quo. Os quadros dos partidos de direita formam-se nos think tanks da mais-valia, a exemplo do Instituto de Estudos Empresariais (IEE). A destreza para sonegar do andar de cima é copiada. A admiração por “empreendedores” ao estilo autocrata de Elon Musk molda a sua cosmovisão. Condomínios fechados e cruzeiros marítimos imitam as mansões e o lazer das “elites”, que não primam por luzes e, sim, pelo dinheiro. A colonização do Estado pelo american way of life e o eugenismo social-étnico corrompem a urbanização democrática com a lógica da plutocracia.
Pelo mecanismo da mimese, o paradigma do neoliberalismo faz paradas no Palácio Piratini e no Paço Municipal da metrópole pioneira: (a) na luta ecológica com a AGAPAN (Associação Gaúcha de Proteção Ambiental), fundada por José Lutzenberger em 1971; (b) na luta pela governabilidade criativa com o OP (Orçamento Participativo), fundado pelo PT / Partido dos Trabalhadores em 1989 e; (c) na luta antineoliberal com o FSM (Fórum Social Mundial), fundado pelos movimentos sociais em 2001. Essas utopias colocaram Porto Alegre no mapa-múndi da esperança e, agora, incentivam a resiliência e energizam a superação das dificuldades com “participação cidadã”. A república não se esgota no binômio “presidencialismo” ou “parlamentarismo”. Há uma terceira variável a considerar.
O habitus do “valor de troca” foca o prejuízo das seguradoras de carros, em vez de as 200 mortes de humanos nas águas. A política tira férias. A individualização apaga os principais desencadeantes da crise ecológica. A ênfase nas individualidades salienta as substâncias, quando o que importa para o entendimento são as relações partidárias e de classe. Pierre Bourdieu utiliza o termo “agente” no lugar de “indivíduo” para salientar os condicionamentos socioeconômicos no contexto histórico, e não conferir uma inexistente autonomia às personas. Desvincular a atividade política e institucional dos acontecimentos implica absolver o modelo de sociedade e os gerentes pelas más consequências.
A liberdade de escolha some diante dos múltiplos relacionamentos e financiamentos que envolvem os indivíduos. Os agentes têm de ser pensados e analisados a partir de uma teoria política relacional; não são átomos isolados. A socialização primária via família e a secundária via escola, somadas ao arrivismo pessoal, injetam nas personalidades públicas as práticas que atenuam o direito à dignidade dos pobres. O princípio da classificação nas interações faz os privilegiados, superiores aos demais.
Os elogios do governador Eduardo Leite (PSDB) e do prefeito Sebastião Melo (MDB) às falsas virtudes das privatizações e o endosso às grandes construtoras para erguer os edifícios de luxo, em áreas de preservação ambiental e presença indígena, é o selo de mediocridade classista. Os agentes de interesses privatistas na administração das unidades federativas não sentem empatia pelos losers. Pertencem ao campo econômico e cultural dos winners, para quem o progresso começa com ricos e fecha o circuito com ricos. Falta-lhes a imaginação no poder para servir o conjunto da coletividade.
Posicionar na ofensiva
Os desastres ambientais contrapõem os neoliberais aos progressistas na disputa pela definição dos parâmetros desejáveis ao reerguimento da vida, resgatada dos escombros. O modelo hegemônico baseado na financeirização é confrontado por um modelo alternativo na defesa da população e do combate à especulação. As cidades são dos cidadãos. No dicionário da democracia, a moradia é um direito social. É errado contrabandeá-la para o verbete da “mercadoria”. A primazia está no “valor de uso”. A quantificação é obra do neoliberalismo. A atitude de Lula bota pingos no “i”, ao priorizar as residências fixas para os que tanto sofrem a inaptidão e o descaso dos representantes regionais.
A sociologia espontânea tira a camada externa da cebola e dá nome aos autores da desgraceira no Sul do país. O tema frequenta as conversas nas filas de ônibus e nos bares. “Não se reelegem”. A ciência denuncia o desmatamento de matas ciliares e a urbanização de orlas há décadas. A ciranda financeira no espaço natural e social, com o repasse dos parques ao lucro e os espigões a título de modernização em zonas de inundação – vide o Pontal do Arado, em Porto Alegre – tem as digitais do governador e do prefeito. Por limitação cognitiva ou por vontade de tergiversar, alguns jornalistas choram a Lava Jato, comparam alhos com bugalhos e calam sobre a condenação do juiz suspeito.
Eduardo Leite e Sebastião Melo detêm o “capital simbólico” que se esvai com a credibilidade e a popularidade. O grupo RBS com o totalitarismo de um Big Brother orwelliano arvora-se “nossa voz”. Contudo, gravita os interesses do rentismo. O ibope e a ética da responsabilidade mínguam, na holding. Cabe aos democratas e socialistas assumirem a ofensiva política contra os inimigos da solidariedade socioambiental. Como no poema de Neruda: “Desta cinza / amanhã / renasceremos”.
(*) Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul
Fonte: Sul21
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