08 agosto 2009

Poema











Aos que virão depois de nós

I

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime
pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranqüilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nada do que eu faço
dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
Se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?
Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.

Eu queria ser um sábio.

Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
manter-se afastado dos problemas do mundo
e sem medo passar o tempo que se tem para
viver na terra;
seguir seu caminho sem violência,
pagar o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.

Sabedoria é isso!

Mas eu não consigo agir assim.
É verdade, eu vivo em tempos sombrios!

II

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo
da revolta
e me revoltei ao lado deles.

Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
deitei-me entre os assassinos para dormir,
fiz amor sem muita atenção
e não tive paciência com a natureza.

Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.

III

Vocês, que vão emergir das ondas
em que nós perecemos, pensem,
quando falarem das nossas fraquezas,
nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.

Nós existíamos através da luta de classes,
mudando mais seguidamente de países que de
sapatos, desesperados!
quando só havia injustiça e não havia revolta.

Nós sabemos:

O ódio contra a baixeza
também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca!

Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a
amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.

Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.


Bertold Brecht

Gravura: Guernica (Pablo Picasso)

3 comentários:

Unknown disse...

"Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão."

Sabes Júlio,me fizeste pesquisar
Brecht.Seria o jeito de entender o poema.O alemão viveu duas guerras e não foi tragado por elas.Manteve sua arte e usou-a como forma de conscientização. Excelente !

Abrs!

Miguel Graziottin disse...

Brecht sempre...
Passei por aqui para convidá-lo a conhecer meu blog.
Talvez lembre-se de mim das reunioes da ED em Porto Alegre.
Um abraço
http://miguelgrazziotinonline.blogspot.com

JÚLIO GARCIA disse...

Yvy: o Brecht foi uma daquelas pessoas que podemos chamar de 'imprescindíveis'; além e tudo, foi poeta, dramaturgo e revolucionário.

...

Miguel: com certeza, como não iria lembrar do grande companheiro de Caxias do Sul, médico e combatente socialista? Bons tempos aqueles, das fecundas reuniões da direção da ED, 'resistindo e avançando', sob a liderança insibstituível do grande companheiro Flávio Koutzii...
Grande abraço!