San Cristóbal de las Casas, Chiapas – Gaspar Morquecho Escamilla se recorda como se fosse ontem, na praça central de San Cristóbal de las Casas. Passaram-se 20 anos daquele 1º de janeiro de 1994. A madrugada assomava no céu quando, no meio do entrevero da praça ocupada pelos zapatistas, apareceu o Subcomandante Marcos. Foi o primeiro jornalista que falou com ele naquele nascente ano novo que iria marcar para sempre a história do México e da América Latina.
Já se passaram anos e anos, e também balas e mortos, prisões e injustiças. Ocorreram críticas e zombarias, mas Marcos e os zapatistas seguem aqui, presentes. Há quem diga que estão mortos, esquecidos, caídos no poço da história. Mas não. Felipe Arizmendi Esquivel, bispo da diocese local, diz: “muita gente pergunta se ainda existe o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e eu lhes digo que não só existe, como tem presença, força, planos e projetos, não é algo do passado, nem semi-morto”.
Ocorreram tantas coisas que seria preciso detalhá-las por ordem alfabética. Isso pode ser visto, a céu aberto, de um lado da praça, em frente à catedral. Agora instalaram uma pista para patinar sobre o gelo e um tobogã para deslizar-se no presente. A rua Real de Guadalupe é uma miniatura da oferta ultra-liberal. As marcas internacionais tem seu lugar, se oferece “pão europeu”, há bares com nomes em inglês, não menos de quatro restaurantes argentinos e uma infinidade de butiques de luxo que vendem roupa e essa pedra suave como a lua que é o âmbar. “Os indígenas surfam entre essas modernidades”, diz com um tom de lucidez neutra um jovem em um dos muitos bares da moda que se esparramam ao longo da Real Guadalupe.
Em um mundo muito diferente deste, Gaspar Morquecho Escamilla se encontrou na praça com o Subcomandante. Este jornalista se instalou em San Cristóbal e sempre trabalhou com comunidades e povos indígenas “com a pretensão de criar organizações sociais e políticas para fazer a revolução neste país”. E precisamente neste lugar “1994 nos agarrou”’. Gaspar lembra que em 1993 o tema dos movimentos armados em Chiapas era frequente. Em dezembro daquele ano, a agitação se tornou mais visível, mas ninguém calculou que a ofensiva iria explodir tão rapidamente. Escamilla lembra que uma mulher das comunidades indígenas perguntou a ele: será que haverá guerra? E houve, apesar das condições adversas que naquele momento predominavam para lançar uma guerra contra o governo do então presidente Carlos Salinas de Gortari.
Chiapas foi e é pobre. Os frutos da reforma agrária aplicada depois da revolução de 1910 não chegaram a estas terras. Marcos e os zapatistas tomaram as ruas para exigir uma repartição mais equitativa das riquezas e a propriedade das terras que nunca esteve nas mãos dos camponeses. Na declaração da Selva de Lancadona (1993), os zapatistas expressaram claramente os objetivos: “luta por trabalho, terra, moradia, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz...conseguir o cumprimentos destas demandas básicas de nosso povo formando um governo de nosso país livre e democrático”.
Em uma carta do Subcomandante de fevereiro de 1994, Marcos ampliou os objetivos com essa poesia e ironia verbal que o caracteriza: “Tomado do poder? Não, apenas algo mais difícil: um mundo novo”. Em dezembro de 1993, o Exército Zapatista de Libertação Nacional apelou ao artigo 39 da Constituição mexicana como argumento para a derrubada do presidente Carlos Salinas de Gortari, a quem acusavam de ter vencido as eleições de 1988 com uma “fraude eleitoral de enormes proporções”. Nas primeiras horas de janeiro de 1994, o EZLN ocupou San Cristóbal de las Casas e outros seis municípios. “Neste momento, eu era o único jornalista na praça”, diz Gaspar.
Em vinte anos, o mundo se renovou em Chiapas, mas segundo a ordem imposta pelo consumo universal. As estatísticas são uma constante linha para baixo: quase 79% da população vivem em uma situação de pobreza. A adversidade atinge as etnias tzeltal, tzotzil, tojolabal ou chol, sempre marginalizadas. Os dados não tiram o otimismo de Gaspar Morquecho Escamilla. “Estamos frente a um movimento, o EZLN, que tem 44 anos. Declararam a guerra nas piores condições que podem existir no mundo e localmente enfrentando um cenário adverso para qualquer movimento armado. Mas já levam 20 anos de resistência com uma campanha de contra-insurgência que começou em 1995. E aí estão. É um movimento de resistência com grande capacidade em termos de organização e mobilização, com sistemas de saúde, de transporte, de produção, abastecimento e comunicação”.
Sobre isso não há dúvidas. O EZLN impulsiona há muitos anos um processo que tende a deixar nas mãos do povo a gestão política e as organizações sociais. Assim foram surgindo os municípios autônomos que logo passaram a fazer parte dos cinco caracóis e das cinco juntas de bom governo regidas por sete princípios: 1. Servir e não se servir; 2. Representar e não suplantar; 3. Construir e não destruir; 4. Obedecer e não mandar; 5. Propor e não impor; 6. Convencer e não vencer; 7. Baixar e não subir. “Aqui manda o povo e o governo obedece”, proclama um cartaz de uma zona sob controle zapatista. A utopia tem voz e rosto. E muitas ameaças que a cercam.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer - Via Carta Maior
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