*Pela relevância (sobretudo pelo resgate histórico) - e por ter tido também este Editor a honra de ter militado em seus quadros (e não faz tanto tempo assim... aliás, o que é o 'tempo', mesmo?!), reproduzo a seguir, na íntegra (com pequena edição!), a postagem 'Qual era a onda da Libelu?' realizada pela jornalista Cynara Menezes em seu blog 'Socialista Morena', hospedado no sítio da Carta Capital.
Boa leitura!
(Júlio Garcia)
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"A militância politica é uma experiência única na existência, faz parte de sua memória para sempre. Acontece com a OSI ou outras organizaçãos. Ninguém passa impunemente por isso. Você entra em contato com forças absolutas, tem a nítida sensação, correta ou não, de que está mexendo na roda da história. Dedica as melhores horas de seu dia e possivelmente alguns dos melhores anos de sua vida para construir uma sociedade diferente. Os livros que você lê, os filmes que assiste e até seu trabalho como cidadão comum têm outro sentido. Hoje você pode até achar que estava sonhando, mas aquele momento foi maravilhoso. Os projetos podem ter dado errado, a vida pode ter tomado outro rumo e muitos amigos de antes até se mostraram uma decepção, mas você aprendeu ali algumas verdades que vão te acompanhar pelo resto da vida." Paulo Moreira Leite
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Me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu
me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão
(Paulo Leminski, Para a liberdade e luta)
O nome é simpático. Lembra o apelido carinhoso de uma moça, a palavra amor em alemão, a corruptela de “libelo”, um poema concreto. Liberdade e Luta: Libelu. A corrente de inspiração trotskista seduziria centenas de jovens em meados da década de 1970, quando o movimento estudantil começava a renascer no Brasil, ainda durante a ditadura militar. Eu não alcancei a Libelu. Na minha época de estudante, mais de uma década depois, só havia duas opções: ser do PCdoB (Viração, a quem chamávamos, na Bahia, de “cururus”) ou anarquista. Gostei mais dos anarquistas, eram mais divertidos e não proibiam a maconha.
Curioso é que, se não conheci nenhum na faculdade, hoje em dia, para qualquer lado para onde olho, vejo um ex-Libelu –à esquerda, mas também à direita. Talvez você não saiba, mas pode haver um Libelu a seu lado neste momento, no jornalismo, nas trincheiras partidárias ou em uma atividade sem nenhuma relação com a política. O ex-ministro Luiz Gushiken, morto no dia 14 de setembro, foi da Libelu, assim como o também ex-ministro Antonio Palocci e Clara Ant, assessora de Lula. Markus Sokol, candidato à presidência na atual sucessão à direção nacional do PT, é outro ex-Libelu.
Na Folha de S.Paulo, onde trabalhei muitos anos, eu nem sabia, mas estava cercada por ex-militantes do braço estudantil da OSI (Organização Socialista Internacionalista), que tinha como um de seus dirigentes Luis Favre. Caio Túlio Costa, que foi secretário de redação e ombudsman do jornal, Matinas Suzuki, Laura Capriglione, Mario Sérgio Conti e o crítico de gastronomia Josimar Melo, entre outros, foram da Libelu. À frente da Folha em sua renovação, no início da década de 1980, Otavio Frias Filho empregou muitos militantes de esquerda no jornal, que tinha, talvez até por isso, um perfil muito menos conservador do que hoje. Além dos ex-Libelu, havia também, ocupando postos importantes na redação, ex-militantes do MR-8 e da Refazendo. Nesta época, a Folha, que apoiara o golpe militar, fez campanha pelas Diretas Já.
Por que havia tantos jornalistas na Libelu? Ao que tudo indica, porque a ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP estava tomada por eles. Caio Túlio, que deixou a militância ao sair da faculdade, em 1979, foi o responsável por levar muitos companheiros de tendência para a Folha. “O Otavio não era simpatizante da Libelu, mas gostava da ‘disciplina’ dos trotskistas. Ele era simpatizante da Vento Novo, uma corrente (de centro) que havia na São Francisco”, conta Caio Túlio. “Fui o primeiro Libelu contratado para começar a renovação do jornal, em 1981. E fui trazendo os melhores jornalistas que conhecia, o Matinas, o Conti (que estava confinado na Câmara dos Vereadores como setorista e eu trouxe para a Ilustrada e o Folhetim), o Rodrigo Naves, a Renata Rangel, o Zé Américo, a Cleusa Turra, o Bernardo Ajzenberg, o Ricardo Melo. Muita gente, não me lembro de todos… Cada um foi trazendo outros. Eram bons, muito bons.”
Em março de 1982, Cleusa Turra, hoje diretora do núcleo de revistas da Folha, chegou a dar entrevista para as páginas amarelas da Veja como militante do PT e da Libelu eleita presidente do DCE da USP. “Não conheço nenhum militante do Liberdade e Luta que tenha aderido ao PDS. Não existe nenhuma lei segundo a qual os jovens devam ser contestadores e os velhos, acomodados”, afirmava Cleusa, aos 23 anos, apelidada “Pituca” no movimento estudantil. “Se tivesse que escolher entre ter uma cabeça como a do governador Paulo Maluf e não ter cabeça nenhuma, preferiria morrer sem juízo, lutando pelos meus direitos.”
Paulo Moreira Leite, que foi redator-chefe da Veja, dirigiu a Época e hoje está na revista IstoÉ, também foi Libelu e se mantém progressista. Mas, ao contrário do que previa Cleusa, uma parte dos ex-Libelu acabaria descambando para a direita mais feroz, como o blogueiro da Veja Reinaldo Azevedo (que também trabalhou na Folha na fase Libelu) e o sociólogo e colunista do Estadão Demétrio Magnoli. Com o nascimento do PT, em 1979, muitos dos seus quadros migraram para o partido, embora, num primeiro momento, tenham acusado o metalúrgico Lula de ser “pelego”. Alguns foram integrar a corrente O Trabalho com Sokol, e outros, como Palocci e Clara, ficaram no entorno de Lula na Articulação. Outros ainda, como os jornalistas citados, simplesmente deixaram a militância de esquerda.
A Libelu foi, de certa forma, uma corrente à frente de seu tempo. Primeiro por retomar o slogan “Abaixo a Ditadura” antes de todo mundo; depois, por criticar o autoritarismo e as barbaridades dos regimes comunistas muitos anos antes da queda do muro de Berlim ou da Perestroika. Trotskista, a OSI, a quem a Libelu era vinculada, já nasceu fazendo a crítica ao stalinismo. Apoiava os esforços de democratização do socialismo no Leste europeu, denunciou a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia e, mais tarde, fez campanha de apoio ao sindicato Solidariedade na Polônia. Sua visão era de que, sem uma revolução política na União Soviética, haveria uma regressão econômica, através da restauração do capitalismo. E não deu outra.
Apesar de trotskistas, os militantes da tendência não toleravam o culto à personalidade em figuras como o líder chinês Mao Tsé-Tung. “Os Libelu eram muito severos em relação a Mao, ao Livro Vermelho, à revolução cultural, ao culto à personalidade, ao autoritarismo, aos assassinatos etcétera e tal”, conta Caio Túlio Costa. “Mas teve um caso engraçado. Na tentativa de criticar o culto à personalidade, fizemos uma edição do (jornal) Avesso cuja capa era o Mao, num dos retratos do realismo socialista da época, grandão, o povo em reverência, abaixo, e inserimos uns versos de Neruda para distanciar o leitor: ‘Só o espanto era invisível, foi a proliferação daquele impassível retrato que incubou o desmedido’. Evidentemente que ninguém entendeu o espírito crítico atrás da foto e do poema, e a edição esgotou. Contrariamente a todos os nossos intentos, os maoístas fizeram da capa pôster de parede…”
O hino da Libelu era uma versão da canção entoada no filme O Incrível Exército de Brancaleone, de Mario Monicelli, com uma sacada divertida: “Branca, Branca, Branca, Leon, Leon, Leon”. Em homenagem a, claro, Trotski. É difundidíssima a versão de que as festinhas da Libelu eram as mais animadas do movimento estudantil e com as garotas mais bonitas, e que havia uma certa liberação no que tange à maconha, ao contrário das demais tendências de esquerda do período. “A Libelu era um curioso e original amálgama político-comportamental, em que o trotskismo convivia com o rock, com o fuminho e com as meninas do pós-queima-dos-sutiãs”, escreveu Matinas Suzuki na Folha de S.Paulo em 1997.
Mas essa concepção festiva não encontra unanimidade entre outros ex-Libelu. “Isso é lenda. As festas da Refazendo eram tão boas quanto às da Libelu. Todos eram muito liberais quanto aos costumes. Não havia Aids. As pessoas estavam sempre muito juntas, fazendo política quase que 24 horas por dia! Eram poucos os que saíam para ‘a noite’. As festas eram nas casas ou repúblicas das mesmas pessoas”, conta Caio Túlio. “Droga era considerada ‘oficialmente’ alienante, mas muitos, muitos, a usavam. Não acredito que a Libelu fosse mais ou menos tolerante do que as outras correntes, onde sempre havia alguém que usava droga, em geral a maconha. Entre a liderança, no entanto, na Libelu, eram pouquíssimos os que usavam drogas.”
“Eu sempre brinco e digo que isto é ‘calúnia’ dos adversários. Fazíamos grandes festas públicas, sempre para arrecadar fundos para o grupo. Havia festas mais fechadas, mas longe do que o mito criou. Sobre os costumes, sim, éramos o grupo mais avançado. Havia respeito e luta pela igualdade de gênero, todos nos considerávamos feministas, defensores da livre orientação sexual”, diz Adeli Sell, ex-vereador do PT-RS e ex-Libelu. “A gente não tinha uma visão moralista do uso das drogas, a restrição era por conta da repressão, porque usando drogas era mais fácil ‘cair’. Até sem usar, muitas vezes a polícia enxertava drogas para uma prisão. Mas muita gente continuava ‘dando uns pegas’ em baseado. Nunca vi nem ouvi falar de outras drogas na época.”
“As festas eram boas, em primeiro lugar, porque os militantes eram jovens. Hormônios em altíssima voltagem, num ambiente de nenhum moralismo. Adversária do dirigismo cultural e de qualquer coisa que pudesse lembrar o chamado realismo socialista, a OSI/Libelu não estimulava o preconceito contra o rock, o que era muito frequente naquela época. O pessoal gostava de MPB e ouvia muita Rita Lee, Mutantes e mesmo sucessos estrangeiros. Havia espaço para Cartola e Paulinho da Viola, também. Certa vez, Baby Consuelo, em fase pré-pentecostal, naturalmente, foi a estrela de um dos shows promovidos pela Libelu. Mas ela não era simpatizante. Cobrou cachê”, conta um ex-militante que prefere se manter na clandestinidade até hoje. Segundo ele, a maconha não era nada tolerada e teve até dirigente expulso por ser flagrado puxando fumo. “Nunca se aceitou a noção da contracultura de que as drogas poderiam auxiliar na formação da consciência das pessoas. A visão era de que a consciência se forma por uma compreensão racional da política e da história. As drogas também eram consideradas portas de contato com a polícia e criminalidade, o que deveria ser evitado a qualquer custo.”
“As festas eram ótimas, sim. Nunca pensei que alegria e compromisso social fossem incompatíveis. Mas em outras organizações eram abominadas e seus militantes tinham vida de monastério”, lembra Luis Favre. “Diziam que as mulheres eram mais bonitas, mas o que em realidade acontecia é que elas tinham destaque na disputa política estudantil. Ao mesmo tempo, a juventude vivia sob o impacto do maio de 68 na França, da primavera de Praga, e a Libelu era das poucas que se identificava com ambos os processos, pois condenava não só o capitalismo, como aquele sinistro sistema pretensamente ‘socialista’.” Sobre as drogas, diz Favre, “a condenação era muito estrita na corrente trotskista. Não se brincava com isso, ainda mais no período militar”.
O jornalista Alex Antunes, também ex-Folha e ex-Libelu, é peremptório: “As festas eram as melhores mesmo. Por uma questão simples: o povo das outras tendências, particularmente os cururus (PC do B), acreditavam numas teses culturais como a do nacional e popular, esse tipo de bobagem de viés realista-socialista. Só nas festas da Libelu tocava Stones e outras bandas de rock, esse é um fato; e as pessoas não implicavam nada com Caetano e Gil, como acontecia naquela época de enfrentamentos como o da ‘tanga do Gabeira’. E nós da ECA ainda metemos o punk e pós-punk na parada. Não tinha essa abertura estética em nenhuma outra tendência. Quanto às garotas, ou melhor, à liberalidade de costumes, era na base da Libelu, particularmente em escolas como a ECA e a FAU, onde as coisas aconteciam. Foi o primeiro lugar onde eu vi homem cumprimentar homem com selinho. E as garotas eram lindas mesmo, muito auto-suficientes e estilosas hippinhas“.
Pergunto aos ex-militantes algo que me deixa particularmente curiosa: como é que alguns membros da vanguardista Libelu foram parar na direita mais reacionária?
Paulo Moreira Leite:
– Acho que em anos recentes os grupos conservadores recrutaram militantes em todas as correntes da esquerda brasileira. Possivelmente por causa de seus laços com a ditadura, nossos conservadores nunca tiveram meios de formar seus próprios quadros civis para atuar numa democracia. O PPS, que era o antigo Partido Comunista, foi em bloco para a direita e hoje se dedica a combater o PT. É sua razão de ser. Muitos quadros do PSDB que fizeram a privatização de estatais no governo de Fernando Henrique Cardoso vieram da Ação Popular e do PCB. Você encontra antigos militantes da ALN de Marighella entre pessoas que são anti-petistas 24 horas por dia. Os principais dirigentes da OSI ajudaram a fundar o PT e quem continuou em sua atividade política na vida adulta continua neste partido. A organização teve uma divisão importante na década de 1980, quando eu já não era mais militante, mas todos ingressaram no PT. Antes, outros fundaram o PCO. Mas é certo que alguns quadros, que foram militantes na juventude, seguiram outra perspectiva na vida e se tornaram intelectuais orgânicos de grupos conservadores. Não vejo nada de muito especial nisso. Não foi a regra. Alguns casos você pode explicar pelos confortos que o conservadorismo pode proporcionar. Ele dá prestígio, promove as pessoas. Mas não só. O país se democratizou, o PT se consolidou. Ocorreram mudanças muito importantes no mundo, a começar pela queda do Muro de Berlim e tudo o que ela representou. Apareceram questões e desafios diferentes para todo mundo.
Adeli Sell:
– Bem, aqui em Porto Alegre tem um aguerrido militante que foi para posições bem à direita, como sei do caso do comentarista da Band. Mas de resto não sei se foram para a direita. Deve ter mais alguns, mas a maioria dos que conheço está no PT. Alguns foram para o PSOL, o que lastimo profundamente, pois foram estes quatro ou cinco militantes que foram fundamentais para a minha entrada na Libelu e minha formação política. Pelo que vejo aqui e dos que encontro espalhados pelo país, a maioria continua com posições avançadas, de esquerda, militando ativamente.
Luis Favre:
– Em todas as organizações juvenis encontramos casos de indivíduos que evoluíram para o extremo oposto de suas primeiras convicções. Mas, pelo contrário, o mais notável no caso da Libelu é que uma grande parte de seus quadros participaram e participam ainda hoje da CUT e do PT. E muitos dos que se afastaram da atividade militante ou política continuam do mesmo lado, em termos gerais, dos ideais que abraçaram na juventude. Encontrei muitos deles acompanhando e despedindo-se do nosso querido Luiz Gushiken.
Caio Túlio Costa:
– Não foram só integrantes da Libelu que mudaram de posição radicalmente na vida. Alguns ex-Libelu chamam a atenção porque eram todos jovens trotskistas, de extrema-esquerda, e se transformaram em pessoas bastante conservadoras. Acho que esses fenômenos fazem parte do movimento normal da vida; não me assusto com isso, não. A rigor, na realidade, veja bem, eles não mudaram, continuam extremistas…
Uma vez Libelu sempre Libelu? Há algo da corrente que permanece nos ex-militantes até hoje?
Caio:
– Em alguns, certamente. A formação política rigorosa (muita leitura, grupos de estudo, reuniões intermináveis, assembleias estudantis, luta política, alinhamento internacional, ceticismo em relação às instituições “burguesas”) deixa marcas profundas. Gushiken, por exemplo, ou alguns dos líderes de então, como o Markus Sokol ou o Julio Turra. Estes serão sempre Libelus autênticos.
Adeli:
– Tem uma liga, uma solidariedade, um profundo companheirismo, carinho, muitas e muitas identificações. Tanto é assim que pretendemos ainda neste ano fazer a grande festa da Libelu. Com a morte do Gushiken, todos impactados com a grande perda, achamos que devemos nos encontrar e festejar o que fizemos.
Luis:
– Uma parte importante da Libelu conseguiu superar suas limitações, sua estreiteza ideológica, seu sectarismo e intelectualismo, em parte desconectado da realidade, para, junto a outros militantes, de outras origens, com outra história, construir uma central sindical e um dos maiores partidos de esquerda do mundo. Ter contribuído um pouquinho no que essa central sindical e esse partido aportou ao progresso social do Brasil, já é fonte de satisfação para os que participamos dessa “nossa” história. Mudamos muito, sem mudar de lado.
Paulo:
– A militância politica é uma experiência única na existência, faz parte de sua memória para sempre. Acontece com a OSI ou outras organizaçãos. Ninguém passa impunemente por isso. Você entra em contato com forças absolutas, tem a nítida sensação, correta ou não, de que está mexendo na roda da história. Dedica as melhores horas de seu dia e possivelmente alguns dos melhores anos de sua vida para construir uma sociedade diferente. Os livros que você lê, os filmes que assiste e até seu trabalho como cidadão comum têm outro sentido. Hoje você pode até achar que estava sonhando, mas aquele momento foi maravilhoso. Os projetos podem ter dado errado, a vida pode ter tomado outro rumo e muitos amigos de antes até se mostraram uma decepção, mas você aprendeu ali algumas verdades que vão te acompanhar pelo resto da vida.
Publicado em 24 de setembro de 2013
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