Foto de arquivo de Eunice Paiva, viúva de Rubens Paiva, ex-deputado desaparecido na ditadura militar — Foto: Reprodução/Instituto Vladimir Herzog |
POR MIGUEL ENRIQUEZ*
O
Brasil está duplamente de luto nesta quinta feira, 13 de dezembro. Por
um lado, pela passagem dos 50 anos da edição do AI-5, o Ato
Institucional que marcou o mergulho definitivo do país nas trevas da
mais feroz ditadura, suprimindo as garantias individuais, a liberdade de
imprensa e opinião, naturalizou a tortura e a morte de opositores
políticos.
Por
outro, em mais uma dessas ironias do destino, é também o dia da morte,
aos 86 anos de idade, de uma das mulheres que mais se destacaram no
combate à tirania naqueles anos de chumbo, a advogada Eunice Paiva,
mulher do ex-deputado Rubens Paiva, cassado em 1964 e assassinado sob
tortura, nos porões da repressão do Doi-Codi do Rio de Janeiro, no
início de 1971.
Sua
trajetória pessoal é um paradigma de superação e transformação. Até
então uma dona de casa de classe média alta, da Zona Sul carioca, sem
militância política anterior, a despeito das atividades do marido,
Eunice se dedicava basicamente às chamadas tarefas do lar e à educação
dos cinco filhos, um deles o escritor Marcelo Rubens Paiva.
“Ela tinha aquele perfil clássico da mulher dos anos 1960”, diz Marcelo. “Linda, arrumada e cheirosa esperando o marido chegar.”
Tudo
mudou naquele 20 de janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro da cidade
do Rio de Janeiro e feriado municipal. A casa da família, no bairro
nobre do Leblon foi invadida por militares que levaram preso não apenas
seu marido, mas também ela e uma filha menor de idade.
Eunice permaneceu
13 dias em poder da repressão, numa cela nas dependências do Doi-Codi,
na Tijuca. Ao voltar para casa, esperava encontrar-se com Rubens. Em
vão. O tempo foi passando e a angústia aumentava, diante da falta de
notícias do marido.
Foi
então que Eunice iniciou uma peregrinação por quartéis e ministérios do
governo do ditador Emilio Médici –chegou a pedir uma audiência em
Brasília com o ministro da Justiça Alfredo Buzaid, de quem recebeu a
garantia de que Rubens fora interrogado, estava bem e logo seria
liberado, no máximo em dois dias.
A
realidade seria bem diferente, como relatou o escritor Antônio Callado,
que encontrara Eunice na praia de Búzios sorridente, feliz pela boa
nova transmitida por Buzaid.
“Dois
dias depois, isto sim, os jornais recebiam uma notícia tão displicente
que se diria que seus inventores não faziam a menor questão que fosse
levada a sério”, escreveu Callado. “Rubens estaria sendo transferido de
prisão, num carro, quando guerrilheiros que tentavam libertá-lo tinham
atacado e sequestrado o prisioneiro.”
O
resto é história. Aos 41 anos de idade. Eunice foi obrigada a acumular
o papel de mãe e pai de Marcelo, Veroca, Eliana, Nalu e Babiu. Para
garantir o sustento da família, já que os bens de Rubens foram
bloqueados, teve de trabalhar e estudar. Mudou-se para São Paulo,
ingressou na faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, formando-se
aos 46 anos.
Como
relata Marcelo, em seu livro “Ainda estou aqui” (Alfaguara),
como advogada Eunice denunciou incansavelmente o desaparecimento de
Rubens por décadas e lutou pelos direitos indígenas ao lado do cantor
Sting.
“Ao longo do tempo, percebi que a grande heroína desta história é minha mãe”, afirmou Marcelo.
Ao
mesmo tempo, Eunice, que nunca se conformou com a farsa oficial, do
sequestro do marido por um grupo de esquerda, também esteve na linha de
frente das lutas pela Anistia, Diretas Já e pela Constituinte.
Em
fevereiro de 1996, ela obteve uma primeira grande vitória: recebeu no
cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais – Primeiro Subdistrito
da Sé, o atestado de óbito de Rubens Paiva, 25 anos depois de sua morte,
o que lhe permitiu acesso aos bens bloqueados do marido. “Na saída, ela
sorriu, falou com a imprensa e ergueu o atestado de óbito como um
troféu”, afirmou Marcelo.
Numa
entrevista ele explicou o sorriso da mãe, que chegou a causar
estranheza aos jornalistas que cobriam o recebimento do atestado.
“Por
anos, fotógrafos nos queriam tristes. Deflagramos uma batalha contra o
pieguismo da imprensa. Sim, éramos a família modelo vítima da ditadura,
mas não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos”, disse.
“Nosso
inimigo não iria nos derrubar. Guerra é guerra. Minha mãe deu o tom: a
família Rubens Paiva não chora em frente às câmeras, não faz cara de
coitada, não se faz de vítima. A angústia, as lágrimas, o ódio, apenas
entre quatro paredes.”
Em
2014, uma nova vitória. Em depoimento à Comissão da Verdade e ao
Ministério Público Federal, o general reformado Raymundo Ronaldo Campos
revelou que o Exército montou uma farsa ao sustentar, na época, que
Paiva teria sido resgatado por seus companheiros “terroristas”, ao ser
transportado por agentes do DOI no Alto da Boa Vista.
Raymundo,
que era capitão, conduzia o veículo supostamente atacado e estava na
companhia dos sargentos e irmãos Jacy e Jurandir Ochsendorf.
Segundo
o jornal O Globo, “O general, que passou os últimos 43 anos
sustentando a farsa admitiu que recebera ordens do então subcomandante
do DOI, major Francisco Demiurgo Santos Cardoso (já falecido), para
levar um Fusca até o Alto da Boa Vista e simular o ataque. Raymundo e os
dois sargentos metralharam e incendiaram o carro, jogando um fósforo
aceso no tanque de combustível.”
A
versão mentirosa, por sinal, tinha um propagador ativo na figura do
capitão e deputado federal Jair Bolsonaro, o campeão das fake news no
país.
Disse
Bolsonaro: “Acusam-nos de ter matado Rubens Paiva. O grupo do Lamarca
suspeitou e chegou à conclusão de que ele foi denunciado pelo Rubens
Paiva quando foi preso. Ninguém resiste à tortura… Então, o grupo do
Lamarca suspeitou que Rubens Paiva o havia denunciado. E esperaram o
momento certo. Quando o Rubens Paiva foi detido pelo Exército, posto em
liberdade, com toda a certeza, foi capturado e justiçado pelo bando do
Lamarca e pelo bando da Esquerda, da VPR. E aí a culpa recai sobre as
Forças Armadas.”.
Assolada
pelo mal de Alzheimer, que a afetava desde 2004 e tema central do livro
Ainda estou aqui, escrito pelo filho, Eunice, infelizmente, não pôde
desfrutar desse momento de restabelecimento da verdade.
A
moléstia, no entanto, a livrou de presenciar uma das cenas mais
sórdidas já vistas na Câmara dos Deputados, naquele mesmo ano.
Protagonizada, para variar, por ele mesmo, o homem que se pretende vir a
ser o presidente de todos os brasileiros.
O
episódio ocorreu durante a inauguração de um busco com a imagem de
Rubens Paiva, em homenagem à sua luta pela democracia no Brasil. Como
relata Chico Paiva Avelino, um dos seus netos, presente ao ato:
Minha
família foi em peso. Emocionadas, minha mãe e minha tia fizeram
discursos lindos e orgulhosos sobre a memória do pai. No meio de um
deles, fomos interrompidos por um pequeno grupo que veio se manifestar.
Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na
época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho do sair de seu
gabinete e vir em nossa direção, gritando que “Rubens Paiva teve o que
mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!”. Ao passar por nós, deu uma
cusparada no busto. Uma cusparada. Em uma homenagem a um colega deputado
brutalmente assassinado.
O
que consola é que os Bolsonaros passam e devem ocupar um nota de rodapé
na história do Brasil. Mulheres guerreiras como Eunice Paiva, que
juntamente com outras gigantes como Therezinha Zerbini, a presidente do
Movimento Feminino pela Anistia, a estilista Zuzu Angel tanto fizeram
pelas liberdades democráticas no país, certamente ficarão.
“De
todas as combatentes que denunciaram os assassinatos e abusos cometidos
pela ditadura militar, durante os anos de chumba, a figura de Eunice
Paiva é uma daquelas que quer permanecem para sempre vivas e cheias de
forças em nossos corações”, declarou em nota a presidente Dilma
Rousseff.
*Fonte: Diário do Centro do Mundo - DCM
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