05 outubro 2018

O antipetismo é só um dos nomes do fascismo



Por Victor Moreto*

Quando Lula foi preso em São Bernardo do Campo, no dia 7 de abril deste ano, foi rompida uma trincheira no país mesmo para aqueles que pensam que ele merecia estar enjaulado na masmorra de Moro.

Até porque muitos desses acreditavam na tal “ditadura petista” que tudo dominava, desde a decisão sobre a calçada da sua rua, passando pela nudez das atrizes da Globo, até o poder judiciário.

Nesse dia, porém, o caldo finalmente entornou.

Parte da militância de esquerda – e já ouvi de membros da alta cúpula do PT – duvidaram de que esse dia chegaria.

Talvez por acreditar que não fossem tão brutais, ou por achar que seria “burrice” uma estratégia tão explicitamente golpista.

Nesse dia, ficou claro que iriam até a última consequência para fazer com que a agenda neoliberal fosse cumprida de cabo a rabo.

A intocável reforma trabalhista, a venda do pré-sal, o congelamento de gastos públicos por 20 anos, o fim do ministério da cultura – no campo político-econômico – juntaram-se à agenda conservadora de ultra-direita do cerceamento da liberdade de imprensa, da censura a exposições e a artistas em geral, da judicialização da política por juízes antidemocratas, da vigilância ideológica nas escolas com o “escola sem partido”, dentre outras.

Nesse dia, ficou claro que nós erramos em achar que os golpistas não queriam deixar rastros.

Nós, na ingenuidade que flerta com a beleza, achávamos que, ainda sim, eles gostariam de se mostrar como democratas.

Nesse dia, a ficha caiu.

A narrativa não estava na escolha entre um candidato que queria fortalecer o estado e outro que gostaria de fazê-lo mínimo.

Estava no ódio a tudo que esta pauta progressista representa no imaginário, principalmente da classe média.

Classe média, diga-se de passagem, que ascendeu nos governos Lula e Dilma e que não se viu mais representada no projeto “de pobre” do PT: claro, o PT nunca politizou essa inclusão.

Deixou-a a cargo do consumo e esperou que, com isso, fosse haver uma simpatia automática desta classe com o partido, ou o projeto de governo.

Como em todo processo fascista que já ocorreu na história, há um inimigo comum construído pelo pensamento violento.

Na Alemanha, de 1930, foram os judeus. No Brasil, desde 2005, esse inimigo é o PT.

O PT é o compêndio, o extrato, a seiva- fundamental da “corrupção”, da “roubalheira”, dos “gayzistas”, dos “comunistas”, das “aborteiras”, da “pouca vergonha” e, por abarcar muito forte o público neopentecostal: do “demônio”.

Aqui, importante deixar uma ressalva que essa avaliação não abarca todos os setores da esquerda intelectualizada que criticam o PT por seus erros e alianças, mas é importante mostrar que também há ódio de classe nesse extrato, o que é um assunto polêmico a ser tratado num momento de menos tensão.

Mas, nesse dia, o dia que Lula foi preso – o nome maior e resumo máximo do PT – o duelo foi definido.

Era Lula contra quem o establishment quisesse.

E não seria alguém com a roupagem tecnicista, como um Alckmin ou FHC: seria alguém que encarnasse a alma de um Redentor do conservadorismo, para que a “pátria” fosse resgatada nos seus costumes.

Não à toa, Paulo Guedes está na chapa fascista.

Ele é a chancela clara para o mercado que a agenda neoliberal, já sabidamente impossível de ser implementada pelo voto, seria via um candidato bizarramente reacionário da pior ultra-direita que o país dispõe.

Não importa.

Para este candidato, então, seriam oferecidas as joias da coroa da grande mídia (com raríssimas exceções), a máquina de outros partidos e, principalmente, a blindagem jurídica de um poder judiciário alinhado ideologicamente com o fascismo.

Moro, Fux, Toffoli, Dallagnol, Alexandre, Dodge, Fachin, Gilmar, Barroso, todo o TRF-4, juízes de primeira instância, desembargadores e ministros, magistrados e procuradores, Justiça Federal e Ministério Público.

Não é uma formação de quadrilha porque – tirando as fortes suspeitas de tutela internacional de Moro – eles agem por ódio de classe: não é uma orquestração.

Claro que há muita grana envolvida na criação de células de construção de ideologia, grana forte e internacional, para MBL, VemPraRua e outros grupos de mobilização popular.

Mas, para além disso tudo – e por isso também – há uma proveniência óbvia dos magistrados e procuradores de uma classe média abastada e, tradicionalmente, conservadora e antipetista.

Também há que se considerar a contaminação de anos e anos de ataques de uma mídia que nunca, de verdade, quis o PT.

Faltou eleger o representante de Lula.

Ciro Gomes achou que não era digno desta história e saiu bradando – com toda altivez e direito – ser a terceira via, a via racional.

Veja bem, Ciro não se apresentou como candidato do diálogo.

Ao contrário, ele veio ser o cara “sem rabo preso” que viria explicar, pela razão e alguns arroubos de espevitamento, a economia e o SPC.

Foi uma comunicação confusa. Por vezes, se mostra como uma figura enérgica – às vezes até violento – e em outras encarna um lorde inglês falando desde astronomia ao spread bancário.

Talvez se Dilma tivesse completado o mandato, no desastre econômico interno junto à crise internacional, haveria mais campo para a própria militância petista se desgastar e ganhar força um outro nome no campo progressista fora do PT.

Talvez. Mas esse “talvez” incluiria a sociedade brasileira ter afeição pela democracia, o que não é verdade.

Tanto é que deram um golpe jurídico-parlamentar com uma desculpa esdrúxula, prenderam Lula numa perseguição sem precedentes e tudo isso fez inflamar a reação.

Toda uma identificação com o lado violento fez com que, novamente, as atenções e as paixões se dirigissem a Lula.

Nesse cenário, Haddad se apresentou como “candidato do Lula”.

Num primeiro momento, ele cresce pelo petismo, que também é forte, mas não apresenta muita rejeição porque a transfusão de fel entre a imagem de Lula e a de Haddad tarda um pouco.

Hoje, ao se reconhecer quem é o representante do “mal do PT”, a rejeição sobe e encosta na de Bolsonaro.

Nessa hora, estão definidos os lados: Haddad e o capitão fascista.

A aborteira x o misógino; o viado x o homofóbico; o comunista x o fascista.

Essa eleição não é técnica e, principalmente – e aí está o maior erro de Ciro Gomes na minha opinião – ela é essencialmente emocional.

Sim, falo de irracionalidade. Os pensadores de cadeiras confortáveis e os analistas acadêmicos de macroeconomia estão buscando explicar o golpe, torna-lo pedagógico.

Isso é necessário e muito bonito. Mas não ganha a eleição.

Assim como não barrou o golpe mostrar por A mais B que as pedaladas fiscais não se configuravam como crime de responsabilidade.

Pelo mesmo motivo, o grosso do campo progressista intelectualizado custou a acreditar que Bolsonaro teria chances reais de ganhar a presidência.

“Coelho de largada”, “esse não passa de dois dígitos”, “fogo de palha” disseram muitos e muitos, mesmo com a vitória de Donald Trump lá em cima há pouquíssimo tempo.

E todos nós sabemos que influência política os EUA exercem sobre o Brasil.

Porque nunca quisemos, de fato, nos enxergar como violentos e vis.

Porque nunca fez sentido com o mito da tranquilidade, do samba, da “mulata”, do futebol arte, do sorriso e da felicidade.

Somos, sim, parafraseando Ciro Gomes, proto-fascistas em larga medida. Claro que não só. Mas somos e somos muito.

Freud talvez dissesse que tudo que recalcamos por muito tempo, volta somatizado ou se expressa violentamente como um vômito.

Jung falaria da sombra, o lugar onde não há muita luz e, em algum momento, irrompe como um monstro que sai de baixo da cama nos nossos medos infantis.

Por isso, não adianta fugirmos do problema. A questão não é o antipetismo, puro e simples.

O antipetismo é o nome do fascismo no Brasil, mas ele pode sofrer diversas mutações e assumir os mais variados nomes.

O fascismo é a barbárie que se alimenta das sombras, que se multiplica como um mofo no cantinho escuro das casas, na piada homofóbica, no estupro e na agressão de mulheres por familiares dentro dos seus próprios lares.

Num mundo de sombras, não é a luz que aclara: ela afugenta a escuridão, que sobrevive em um outro canto.

Ao propor uma solução racional, o problema de não encararmos nossas sombras sobrevive e, logo ali na frente, retorna.

Foi assim com a escravidão – instituição que vive sólida nas estruturas inconscientes da população e com a ditadura militar – por sermos o único país da América Latina a não julgar nossos torturadores.

O momento exige que mergulhemos no irracional, no dado escuro e inconfessável que nós lutamos tantos anos para recalcar.

Por isso, o erro de se atribuir ao PT, em si, mais uma vez o bode expiatório.

O PT é o elefante na sala. A questão é o fascismo.

É preciso compreender o fenômeno Lula pela ótica de seus agressores para se entender o que está em jogo.

O campo democrático precisa se reunir em torno de sua candidatura, mesmo – e sobretudo – entre aqueles que querem superar o PT.

Esse partido só será superado quando a raiva que o quer destruir for aplacada.

Foi essa raiva que colocará Haddad no segundo turno e não o contrário, como erroneamente alguns setores até da esquerda consideraram.

Achar que Bolsonaro e o fascismo são “consequências” do petismo é de uma ignorância e de uma irresponsabilidade histórica com as minorias deste país.

É, mais uma vez, inverter o problema e tomar a lógica do agressor.

Ou alguém acha que na Alemanha nazista adiantaria o campo progressista “esconder” os judeus para aplacar a sanha de Hitler?

Assim é o fascismo no Brasil.
...

*Victor Moreto é historiador pela UNIRIO e mestre em Ciências Sociais pela PUC - (via Viomundo)

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