13 novembro 2018

40 anos depois, assistimos à saudação coletiva da violência, diz uruguaia sequestrada no RS durante ditadura


“Os comunistas de hoje são os indígenas, os que lutam pelo meio ambiente, os sem terra, 
os sem teto”, disse Lilian | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Por Débora Fogliatto*

Em 12 de novembro de 1978, 40 anos atrás, o casal uruguaio Universindo Díaz e Lilian Celiberti, juntamente com seus filhos Camilo e Francesca, foram sequestrados de forma clandestina por militares de seu país de origem na casa onde viviam, em Porto Alegre. Após receber uma ligação na sede da redação local da revista Veja, o jornalista Luiz Cláudio Cunha foi até a residência deles, onde flagrou o sequestro e denunciou a colaboração entre as ditaduras dos países sul-americanos no contexto da Operação Condor.

Neste 12 de novembro de 2018, o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha trouxeram a Porto Alegre Lilian, agora com 68 anos, e seus filhos em um evento lembrando os 40 anos do ocorrido. Universindo faleceu em 2012. No Memorial do Rio Grande do Sul, além do painel, também acontece uma exposição que conta a história com documentos da época. A palestra contou ainda com a presença de Luiz Cláudio Cunha e da historiadora Ananda Fernandes, responsável pela exposição.

Em suas falas, os três traçaram paralelos entre o contexto da ditadura e a política brasileira atual. “É nosso dever sempre lembrarmos desse período, e agora é um momento mais propício ainda para que a gente lembre o que foram as ditaduras”, disse Ananda, destacando que há pessoas que defendem a volta de uma ditadura no país e mencionando a importância do papel da imprensa na época. “Foi graças à denúncia da imprensa que essa operação, que previa o desaparecimento deles quatro, acabou fracassando. E foi possível estabelecer laços de solidariedade e resistência a partir da atuação da imprensa também”, destacou.
Filho de Lilian, Camilo tinha oito anos quando ocorreu o sequestro | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Na época do sequestro, Lilian e o companheiro eram militantes do Partido por la Victoria del Pueblo (PVP) e haviam se mudado para o sul do Brasil após passar um período de exílio na Itália, com a ideia de continuar o trabalho a partir daqui. O fato de serem taxados como comunistas foi o suficiente para serem sequestrados e presos. “Uma vez mais na história todos esses títulos caem sobre as vítimas, sempre há uma criminalização para nos colocarem no lugar de criminoso, essa construção para justificar os abusos de poder”, diz a ativista.

Para ela, a situação é muito significativa nos dias atuais, pois essa prática de criminalização permanece a mesma. “Os comunistas de hoje são os indígenas, os que lutam pelo meio ambiente, os sem terra, os sem teto, os desgraçados desse mundo que se organizam para ter dignidade como pessoas. Há 40 anos, o DOPS se comprometeu e atuou junto com militares brasileiros e uruguaios para nos sequestrar, nos mandar para o Uruguai, nos entregar para a ditadura. Isso só se justifica porque nos pintaram como dois guerrilheiros perigosos e armados e não um casal vivendo com seus dois filhos em casa”, analisa.

Isso diz muito sobre a ditadura do próprio Brasil, na avaliação de Lilian, e sobre o plano Condor em geral, que defendia um tipo de sociedade e de economia específica, que eliminava todos os que pensavam de forma contrária. Eram eliminadas todas as liberdades, ideias e opiniões. “Agora nos encontramos em uma situação paradoxal, porque hoje assistimos à essa saudação coletiva da violência e da eliminação do outro como parte da construção de um presidente futuro. Não tenho palavras para isso além de dizer ‘ele não’”, disse, aplaudida pelo público que lotava a sala Multiuso do Memorial.
Lilian já veio a Porto Alegre em outras ocasiões para falar do episódio, que completou
40 anos | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Ela afirmou que, ao longo da vida, aprendeu sobre a necessidade da resistência, de se defender o que pensa em qualquer situação. “Estamos em um momento crucial da história da América Latina, em que se consagrou a igualdade como parte da construção dos estados. Mas essa é uma igualdade que ocultou as diferenças e desigualdades estruturais que condenavam milhões de pessoas à exclusão. Em alguns países, se deixou à margem as populações indígenas, as populações afro-descendentes”, destaca Lilian.

“Nunca fomos todos iguais perante a lei, porque o pobre, o favelado, nunca teve os mesmos poderes perante a lei”, diz ela, defendendo a necessidade de se construir uma igualdade baseada na diversidade, um “mundo com muitos mundos”: “Essa ideia radical de uma sociedade que contém muitos mundos é o que talvez a direita jamais entendeu e a esquerda custou muito a entender. A diversidade é o componente central de uma democracia verdadeira”.

Militante feminista, Lilian citou o movimento argentino Ni Una Menos como um exemplo de mobilização que coloca em evidência fatores anteriormente não percebidos pela sociedade na relação entre homens e mulheres “Vivemos num capitalismo predador que faz da violência seu fio de construção de poder. A violência está nas instituições, nas prisões, na perseguição aos pobres”. Ela relata que se questionou como construir um mundo diferente quando 55 milhões de pessoas elegeram como presidente Jair Bolsonaro. “Esses milhões de pessoas têm que estar hoje num espaço de diálogo, e temos que sair e conversar, porque estou segura de que não há 55 milhões de fascistas no Brasil. Tudo o que temos é a capacidade de diálogo, a abertura à solidariedade e o exercício dessa solidariedade”, defendeu.
Francesca e Camilo, filhos de Lilian, com ela e o jornalista Luiz Cláudio Cunha,  
que colaborou para que o sequestro não fosse levado a cabo | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Ela falou, ainda, da necessidade de mudanças na esquerda política e criticou regimes como da Nicarágua, dizendo que um governo que reprime seu povo não pode ser considerado de esquerda. “Defendo uma esquerda humanista, democrática, ecológica, que busca outras formas de produzir e fazer, e seguir questionando o capitalismo depredador. Para construir essa esquerda temos que nos dar as mãos. E isso supõe mudanças radicais, não podemos sair de uma coisa e voltar à outra sem revisar nada. Temos que repensar quem somos, que sociedade somos, o quão livres somos”, defendeu.

Para ela, o único caminho possível para os brasileiros é o da solidariedade e pensamento crítico. “É possível pensar e construir outra sociedade, mas para isso é preciso sermos capazes de mudarmos também a nós mesmos. É momento de reflexão e de revolucionar as cabeças para pensarmos em outros lugares, porque se seguirmos pensando nas mesmas lógicas de poder, seguiremos chegando nos mesmos lugares”.

Antes de iniciar sua fala, o jornalista Luiz Cláudio Cunha citou todos os envolvidos no trabalho de reportagem que durou 21 meses e que culminou numa das apurações mais famosas da história brasileira, que o rendeu o prêmio Esso. Em seguida, ele destacou o caráter de colaboração entre as ditaduras que ocorria na época. “O sequestro dos uruguaios é uma operação binacional, os uruguaios que vieram para cá sequestrá-los vieram com sanção do Brasil. Mantinham uma irmandade em nome do terrorismo de Estado, que unificava todos os governos submetidos por ditaduras militares: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai”, relatou.
O jornalista falou com preocupação sobre a eleição de Bolsonaro: “tempos sombrios”
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Atualmente, vivemos um momento de defesa do ódio, intolerância e violência, segundo o jornalista. “Hoje há um discurso endêmico no país que defende o ódio, a intolerância e consegue inclusive saudar a ditadura e a tortura. O capitão que acabou ganhando a eleição é um notório defensor da ditadura, nostálgico daquele regime, se orgulha disso, exalta torturadores e tem como livro de cabeceira a obra do mais notório torturador do regime, Brilhante Ustra”, criticou Luiz Cláudio, destacando ainda que Bolsonaro se elegeu com um discurso “completamente vazio, calcado numa retórica totalitária e abrindo a porta de tempos sombrios para todos nós”.

Mencionou, ainda, o fato de o Brasil não ter julgado e prendido os principais militares e torturadores de suas ditaduras, diferentemente do que fez a Argentina, por exemplo. Ele citou o caso do general e ditador Jorge Rafael Videla, condenado à prisão perpétua em 2010 pela morte de 31 prisioneiros após seu golpe de estado. “Bolsonaro deve elogiar a ditadura da Argentina, que foi três vezes mais curta, mas atingiu em apenas sete anos a marca macabra de 30 mil pessoas mortas, a maioria desaparecidas. Mas lá, Videla morreu na cadeia em 2013 aos 87 anos cumprindo pena de prisão perpétua. Foi condenado pela morte de 31 pessoas, bem menos do que as 50 mortes confirmadas de Ustra, ídolo do presidente eleito, o qual morreu livre e solto, como todos os colegas de farda”, criticou o jornalista.

Para ele, o fantasma da ditadura volta a assombrar o Brasil com a eleição de Bolsonaro, assim como o fundamentalismo religioso que o coloca “logo abaixo de Deus”. “Resistimos por causa de gente como vocês, que lutaram e resistiram. Está na hora de juntar as forças outra vez contra a ameaça no horizonte. Obrigado por existirem e resistirem”, finalizou. Após sua fala, foram convidados a se pronunciar ainda outros integrantes da equipe jornalística e ativistas da época, sobreviventes das ditaduras.

*Jornalista do Sul21, fonte desta postagem

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