Por Débora Fogliatto*
Em 12 de novembro de 1978, 40 anos atrás, o casal uruguaio
Universindo Díaz e Lilian Celiberti, juntamente com seus filhos Camilo e
Francesca, foram sequestrados de forma clandestina por militares de seu
país de origem na casa onde viviam, em Porto Alegre. Após receber uma
ligação na sede da redação local da revista Veja, o jornalista
Luiz Cláudio Cunha foi até a residência deles, onde flagrou o sequestro e
denunciou a colaboração entre as ditaduras dos países sul-americanos no
contexto da Operação Condor.
Neste 12 de novembro de 2018, o Arquivo Histórico do Rio Grande do
Sul e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha
trouxeram a Porto Alegre Lilian, agora com 68 anos, e seus filhos em um
evento lembrando os 40 anos do ocorrido. Universindo faleceu em 2012. No
Memorial do Rio Grande do Sul, além do painel, também acontece uma
exposição que conta a história com documentos da época. A palestra
contou ainda com a presença de Luiz Cláudio Cunha e da historiadora
Ananda Fernandes, responsável pela exposição.
Em suas falas, os três traçaram paralelos entre o contexto da
ditadura e a política brasileira atual. “É nosso dever sempre lembrarmos
desse período, e agora é um momento mais propício ainda para que a
gente lembre o que foram as ditaduras”, disse Ananda, destacando que há
pessoas que defendem a volta de uma ditadura no país e mencionando a
importância do papel da imprensa na época. “Foi graças à denúncia da
imprensa que essa operação, que previa o desaparecimento deles quatro,
acabou fracassando. E foi possível estabelecer laços de solidariedade e
resistência a partir da atuação da imprensa também”, destacou.
Na época do sequestro, Lilian e o companheiro eram militantes do
Partido por la Victoria del Pueblo (PVP) e haviam se mudado para o sul
do Brasil após passar um período de exílio na Itália, com a ideia de
continuar o trabalho a partir daqui. O fato de serem taxados como
comunistas foi o suficiente para serem sequestrados e presos. “Uma vez
mais na história todos esses títulos caem sobre as vítimas, sempre há
uma criminalização para nos colocarem no lugar de criminoso, essa
construção para justificar os abusos de poder”, diz a ativista.
Para ela, a situação é muito significativa nos dias atuais, pois essa
prática de criminalização permanece a mesma. “Os comunistas de hoje são
os indígenas, os que lutam pelo meio ambiente, os sem terra, os sem
teto, os desgraçados desse mundo que se organizam para ter dignidade
como pessoas. Há 40 anos, o DOPS se comprometeu e atuou junto com
militares brasileiros e uruguaios para nos sequestrar, nos mandar para o
Uruguai, nos entregar para a ditadura. Isso só se justifica porque nos
pintaram como dois guerrilheiros perigosos e armados e não um casal
vivendo com seus dois filhos em casa”, analisa.
Isso diz muito sobre a ditadura do próprio Brasil, na avaliação de
Lilian, e sobre o plano Condor em geral, que defendia um tipo de
sociedade e de economia específica, que eliminava todos os que pensavam
de forma contrária. Eram eliminadas todas as liberdades, ideias e
opiniões. “Agora nos encontramos em uma situação paradoxal, porque hoje
assistimos à essa saudação coletiva da violência e da eliminação do
outro como parte da construção de um presidente futuro. Não tenho
palavras para isso além de dizer ‘ele não’”, disse, aplaudida pelo
público que lotava a sala Multiuso do Memorial.
Ela afirmou que, ao longo da vida, aprendeu sobre a necessidade da
resistência, de se defender o que pensa em qualquer situação. “Estamos
em um momento crucial da história da América Latina, em que se consagrou
a igualdade como parte da construção dos estados. Mas essa é uma
igualdade que ocultou as diferenças e desigualdades estruturais que
condenavam milhões de pessoas à exclusão. Em alguns países, se deixou à
margem as populações indígenas, as populações afro-descendentes”,
destaca Lilian.
“Nunca fomos todos iguais perante a lei, porque o pobre, o favelado,
nunca teve os mesmos poderes perante a lei”, diz ela, defendendo a
necessidade de se construir uma igualdade baseada na diversidade, um
“mundo com muitos mundos”: “Essa ideia radical de uma sociedade que
contém muitos mundos é o que talvez a direita jamais entendeu e a
esquerda custou muito a entender. A diversidade é o componente central
de uma democracia verdadeira”.
Militante feminista, Lilian citou o movimento argentino Ni Una Menos
como um exemplo de mobilização que coloca em evidência fatores
anteriormente não percebidos pela sociedade na relação entre homens e
mulheres “Vivemos num capitalismo predador que faz da violência seu fio
de construção de poder. A violência está nas instituições, nas prisões,
na perseguição aos pobres”. Ela relata que se questionou como construir
um mundo diferente quando 55 milhões de pessoas elegeram como presidente
Jair Bolsonaro. “Esses milhões de pessoas têm que estar hoje num espaço
de diálogo, e temos que sair e conversar, porque estou segura de que
não há 55 milhões de fascistas no Brasil. Tudo o que temos é a
capacidade de diálogo, a abertura à solidariedade e o exercício dessa
solidariedade”, defendeu.
Ela falou, ainda, da necessidade de mudanças na esquerda política e
criticou regimes como da Nicarágua, dizendo que um governo que reprime
seu povo não pode ser considerado de esquerda. “Defendo uma esquerda
humanista, democrática, ecológica, que busca outras formas de produzir e
fazer, e seguir questionando o capitalismo depredador. Para construir
essa esquerda temos que nos dar as mãos. E isso supõe mudanças radicais,
não podemos sair de uma coisa e voltar à outra sem revisar nada. Temos
que repensar quem somos, que sociedade somos, o quão livres somos”,
defendeu.
Para ela, o único caminho possível para os brasileiros é o da
solidariedade e pensamento crítico. “É possível pensar e construir outra
sociedade, mas para isso é preciso sermos capazes de mudarmos também a
nós mesmos. É momento de reflexão e de revolucionar as cabeças para
pensarmos em outros lugares, porque se seguirmos pensando nas mesmas
lógicas de poder, seguiremos chegando nos mesmos lugares”.
Antes de iniciar sua fala, o jornalista Luiz Cláudio Cunha citou
todos os envolvidos no trabalho de reportagem que durou 21 meses e que
culminou numa das apurações mais famosas da história brasileira, que o
rendeu o prêmio Esso. Em seguida, ele destacou o caráter de colaboração
entre as ditaduras que ocorria na época. “O sequestro dos uruguaios é
uma operação binacional, os uruguaios que vieram para cá sequestrá-los
vieram com sanção do Brasil. Mantinham uma irmandade em nome do
terrorismo de Estado, que unificava todos os governos submetidos por
ditaduras militares: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai”,
relatou.
Atualmente, vivemos um momento de defesa do ódio, intolerância e
violência, segundo o jornalista. “Hoje há um discurso endêmico no país
que defende o ódio, a intolerância e consegue inclusive saudar a
ditadura e a tortura. O capitão que acabou ganhando a eleição é um
notório defensor da ditadura, nostálgico daquele regime, se orgulha
disso, exalta torturadores e tem como livro de cabeceira a obra do mais
notório torturador do regime, Brilhante Ustra”, criticou Luiz Cláudio,
destacando ainda que Bolsonaro se elegeu com um discurso “completamente
vazio, calcado numa retórica totalitária e abrindo a porta de tempos
sombrios para todos nós”.
Mencionou, ainda, o fato de o Brasil não ter julgado e prendido os
principais militares e torturadores de suas ditaduras, diferentemente do
que fez a Argentina, por exemplo. Ele citou o caso do general e ditador
Jorge Rafael Videla, condenado à prisão perpétua em 2010 pela morte de
31 prisioneiros após seu golpe de estado. “Bolsonaro deve elogiar a
ditadura da Argentina, que foi três vezes mais curta, mas atingiu em
apenas sete anos a marca macabra de 30 mil pessoas mortas, a maioria
desaparecidas. Mas lá, Videla morreu na cadeia em 2013 aos 87 anos
cumprindo pena de prisão perpétua. Foi condenado pela morte de 31
pessoas, bem menos do que as 50 mortes confirmadas de Ustra, ídolo do
presidente eleito, o qual morreu livre e solto, como todos os colegas de
farda”, criticou o jornalista.
Para ele, o fantasma da ditadura volta a assombrar o Brasil com a
eleição de Bolsonaro, assim como o fundamentalismo religioso que o
coloca “logo abaixo de Deus”. “Resistimos por causa de gente como vocês,
que lutaram e resistiram. Está na hora de juntar as forças outra vez
contra a ameaça no horizonte. Obrigado por existirem e resistirem”,
finalizou. Após sua fala, foram convidados a se pronunciar ainda outros
integrantes da equipe jornalística e ativistas da época, sobreviventes
das ditaduras.
*Jornalista do Sul21, fonte desta postagem
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