Por Marco Weissheimer, no Sul21*
O colapso do Estado de Direito e a violação do processo eleitoral,
materializados de diferentes formas em 2018, têm consequências de graves
implicações para o presente e o futuro do país. Para um militante
histórico da esquerda brasileira e latino-americana, a mais grave delas é
que a democracia acabou no Brasil. “Como a democracia real depende de
um certo grau de estado de direito, o colapso deste impede a existência
de um estado de democracia. Ela levou um tiro no coração”, diz Flavio
Koutzii, que lutou contra duas ditaduras, no Brasil e a Argentina, onde
ficou preso entre 1975 e 1979.
Para Koutzii, não há nenhuma forçação de barra no diagnóstico. A
democracia, sustenta, sempre foi, com todos os seus limites, o lugar
onde desembocaram várias lutas por direitos por liberdade. “Agora está
acontecendo o contrário. O fato de que a direita está transformando a
ignorância e a opressão em estados de vida e código de valores, isso
bate de frente com a ideia de democracia. Isso se traduz não só na
opressão de homens e mulheres, mas na desconstrução da própria
possibilidade democrática”.
Em entrevista ao Sul21, Flavio Koutzii falou sobre as implicações
desse diagnóstico e alertou para os riscos da normalização diante de
situações intoleráveis como, por exemplo, enfatiza ele, é a prisão do
ex-presidente Lula em Curitiba. “As rotinas podem nos deixar divididos e
eventualmente desatentos. É impossível estar sempre atento em meio a
tantos ataques e sentindo tanta dor todo o tempo. A força de atração da
normalização é muito grande”. Na vida presente de Flavio, que já passou
muitos anos fora do Brasil em função de suas escolhas políticas, dois
elementos impedem que essa normalização floresça: os sentimentos de
estranhamento e de exílio em seu próprio país:
“A soma dos meus anos na Argentina e na França, em função das minhas
escolhas políticas, resultou em 14 anos fora do país. Eu me sinto hoje
no Brasil um exilado. (…) Quando até a tua rua te é um pouco estranha e
quando os caras com quem cruzava no bairro também despertam
estranhamento e incerteza, chegamos a um ponto que dispensa maiores
explicações. Eles não colocaram uma baioneta no nosso peito, mas há uma
baioneta invisível nos espetando. Esse estranhamento na rua, no
supermercado ou em um restaurante expressa uma percepção que diz: esse
não é meu lugar”.
Sul21: Como definiria o atual momento político que estamos
vivendo, pouco mais de dez dias depois da posse de Jair Bolsonaro na
Presidência da República?
Flavio Koutzii: Em algumas conversas recentes, achei
útil chamar a atenção para o fato de que a democracia acabou no Brasil.
Se eu tiver razão e o radicalismo da frase não for apenas a expressão
de uma frase de efeito, é bom se dar conta disso. Um dos principais
elementos que sustenta essa afirmação é o colapso do Estado de Direito
no país. Em toda a luta dos últimos anos, na resistência contra o
impeachment de Dilma e contra a prisão de Lula, as decisões advindas do
Judiciário, do Ministério Público e de suas esferas de operação
repressiva demonstram esse colapso. Ele foi tão onipresente que pode ter
sido banalizado. Como a democracia real depende de um certo grau de
estado de direito, o colapso deste impede a existência de um estado de
democracia. Ela levou um tiro no coração.
Outro elemento que compõe esse cenário diz respeito ao processo
eleitoral que foi violado da forma mais central. O tema das fake news,
embora não esgote essa problemática, explicita o que a justiça eleitoral
se tornou. O processo eleitoral, considerado como o grande indicador da
existência da democracia, também colapsou. A inércia do Tribunal
Superior Eleitoral diante do que estava acontecendo foi um espetáculo
grotesco. Não se trata apenas da vocação insuperável ao direitismo e da
conivência mal disfarçada com os interesses do poder que caracteriza os
supremos no Brasil. Eles também não estavam preparados para enfrentar o
problema. A meia-dúzia de banalidades que determinaram não teve efeito
algum.
Fui candidato algumas vezes e acompanhei a evolução de proibições
promulgadas pela Justiça Eleitoral, para não haver panfletos nas ruas,
cartazes em postes ou paredes pintadas. Havia aí um movimento de tipo
“ideológico”, para usar uma palavra em voga. A ideia era “não sujar a
cidade”. Sob um manto supostamente inocente, havia a construção de uma
relação de sinonímia entre sujeira e política.
Sul21: Para alguns, esse diagnóstico de que “a democracia acabou” pode soar meio extremado…
Flavio Koutzii: A democracia, que não é uma palavra
abstrata, se construiu com base em um leque de valores humanistas que
estabeleciam certas noções civilizatórias e fronteiras não para excluir,
mas para incluir. Quando se lutou contra as ditaduras na América
Latina, essa luta foi associada à luta pela redemocratização. Quando se
combateu os coronéis na Grécia, também se tratava de redemocratizar o
país. Quando se venceu o fascismo e o nazismo na Segunda Guerra Mundial,
idem. Então, não estou forçando barra nenhuma. É disso que se trata. A
democracia era, com todos os seus limites, o lugar onde desembocavam
várias lutas por direitos e por liberdade.
Agora está acontecendo o contrário. O fato de que a direita está
transformando a ignorância e a opressão em estados de vida e código de
valores, isso bate de frente com a ideia de democracia. Isso se traduz
não só na opressão de homens e mulheres, mas na desconstrução da própria
possibilidade democrática. É mais do que um estado de sítio o que
ameaça a democracia. É um estado de colapso. E a maioria daqueles que
fazem parte dos estamentos que deveriam protegê-la não resistiu.
Nós, que lutamos contra a ditadura, estamos vivendo um momento
crucial da história. É um momento em que cabe lembrar como os
colaboracionistas se comportaram na França de Pétain, se rendendo a
Alemanha nazista, ou como as pessoas amedrontadas fizeram na Argentina,
dizendo sobre aqueles que lutavam contra a ditadura e sofriam torturas,
desaparecimentos e mortes: “alguma coisa o cara deve ter feito”. Essa
desculpa não existirá no Brasil. Eles não somente ficaram quietos como
votaram no Bolsonaro, caso contrário ele não teria tido a votação que
teve. Esses, que serão milhões, vão levar para o túmulo o retrato do
Bolsonaro. É uma maldição eterna da qual não escaparão.
Isso, sem dúvida nenhuma, é uma coisa trágica para o país e para a
democracia. Estamos vendo neste governo que acaba de assumir uma ação
predadora e de traição do país. Isso não chega a ser uma surpresa para
nós, mas ainda não sabemos como se desenhará o final dessa máscara de
horror. Os que ajudaram a gestar esse horror também não sabem o custo
que isso terá para eles. Porque eles “não fizeram por mal”. Fizeram por
estúpidos, muitos. Mas fizeram com uma convicção sincera, embora
convicção composta de elementos inquietantemente regressivos para ser
discreto e elegante.
Sul21: Quais algumas das principais implicações desse
diagnóstico para a vida política da esquerda e do campo progressista em
geral?
Flavio Koutzii: Muitos de nós, do campo
progressista, temos chamado a atenção, já há um bom tempo, tanto no
período pós-impeachment quanto logo após a prisão do Lula, para o perigo
político e humano da normalização. Normalização esta podendo ser lida
como uma acomodação de cada um de nós. Não estou recriminando. É mais
uma constatação política. As rotinas podem nos deixar divididos e
eventualmente desatentos. É impossível estar sempre atento em meio a
tantos ataques e sentindo tanta dor todo o tempo. E não estou falando só
da política. Estou falando do ponto de vista do futebol, que eu gosto,
do prazer estético de um filme e de tantas outras coisas das quais
gostamos. São fatores incontornáveis da vida social, que são
envolventes, sedutores, prazerosos e, ao mesmo tempo, normalizadores. A
força de atração da normalização é muito grande.
Eu comecei essa entrevista falando do colapso da democracia, do
estado de direito e do sistema eleitoral no Brasil. Essa caracterização é
como um soco no estômago em meio a essa normalização. Parece que
teremos que lembrar disso o tempo todo. Não é que eu estabeleci isso
racionalmente. É um sentimento. Eu sinto assim. E acho que tem muita
gente sentindo o mesmo. O fato de o Lula estar preso é um exemplo que dá
conta do quero dizer. De vez em quando, alguns grandes amigos me
convidam para ir ver um jogo do Inter, que eu gosto. A partir de um
certo momento, eu disse que não queria mais ir. Não fiz discurso, nem
nada, só disse que não queria ir. Eu continuava vendo o jogo na
televisão privadamente, em casa. Eu não queria ir ao circo. É como se
fosse meio demais. O cara lá, preso, e nós cá, na festa. Eu dou esse
exemplo porque acho que isto está valendo para um monte de gente em
determinadas circunstâncias. Não vamos nos transformar em calvinistas,
mas esse sentimento de mal estar está posto no presente e acho que isso
estará conosco por um tempo, que eu espero que não seja tão longo, mas
não tenho certeza que seja curto.
O fato de ter esse prisioneiro político, que é a figura crucial da
história política do país nos últimos 30 ou 40 anos, e ter uma direita
boçal que tenta cuspir nele todos os dias é intolerável. O desrespeito
cotidiano é afrontoso porque ele dá a dimensão da boçalidade daqueles
que o agridem, transformando esse desrespeito em um método permanente.
Essa é uma razão a mais para que essa luta tenha uma permanência e um
significado mais importante, se é que se precisa ressaltar essa
importância.
Essas circunstâncias tornam cada vez mais aguda a centralidade da
figura do Lula neste período histórico que não sabemos bem quando
termina. Recentemente, foi lançada uma biografia sobre a minha história,
feita pelo historiador Benito Schmidt. Essa biografia tem uma breve
nota no final, que achei importante incluir no livro. Achei importante
naquele momento (novembro de 2017), quando as coisas ainda não estavam
tão agudizadas quanto estão agora, deixar claro que, para mim, a figura
do Che Guevara continuava sendo emblemática e central. Isso não é a
mesma coisa que dizer que tudo o que ele fez estava certo, mas sim que
os caminhos que ele escolheu seguem sendo referências extremamente
importantes pela sua trajetória de vida, pelas escolhas que fez e pelas
coisas que não quis fazer.
A segunda referência que fiz foi ao Lula, como uma figura central do
nosso país. Alguns leitores assinalaram que essa biografia trazia, entre
outras coisas, a longa linha de uma geração, começando no período que
antecedeu o golpe de 64 e vindo até 84. Pareceu-me importante fazer
essas duas referencias, pois, senão, outras coisas poderiam ficar
subjacentes. Houve quem dissesse: como é que esse cara, depois dessa
trajetória e acúmulo crítico, toma ainda Che Guevara e Lula como
referências?
Sul21: Esperariam uma espécie de auto-crítica…
Flavio Koutzii: Imagino que sim. Hoje, congratulo-me
comigo mesmo por ter me dado conta, contemporaneamente, mesmo que com
uma breve nota, que se referir ao Che era se referir a um caminho das
lutas, com seus erros e acertos. Um caminho de enfrentamento radical
contra o poder do capital e o poder dos impérios. A outra referência é a
essa figura central do nosso presente que os caras não deixam nem
falar.
Ao longo da minha vida, estive 14 anos fora do Brasil, em exílio. Uma
parte dele foi voluntária, quando eu vivi na França. A soma dos meus
anos na Argentina e na França, em função das minhas escolhas políticas,
resultou em 14 anos fora do país. Eu me sinto hoje no Brasil um exilado.
Eu não digo muito isso para passar um viés derrotista. Tenho convicção
que é uma maneira muito profunda de dizer o que, para algumas pessoas,
pode ser muito precoce e inadequado. Mas, geracionalmente, essa
expressão, dita por um cara da velha guarda como eu guarda toda sua
intensidade. Ela é escandalosamente significativa do que esses caras
fizeram…É uma expressão que uso com certa discrição e pudor, mas ela tem
uma potência descritiva de dizer onde nós estamos.
Quando até a tua rua te é um pouco estranha e quando os caras com
quem cruzava no bairro também despertam estranhamento e incerteza,
chegamos a um ponto que dispensa maiores explicações. Eles não colocaram
uma baioneta no nosso peito, mas há uma baioneta invisível nos
espetando. Esse estranhamento na rua, no supermercado ou em um
restaurante expressa uma percepção que diz: esse não é meu lugar. Eles
nem percebem esse nosso sentimento. Na verdade, eles acham que tinham
que nos matar como já foi verbalizado expressamente várias vezes. Isso
já basta para causar um grande desconforto entre nós, para dizer o
mínimo. O cara que está torcendo pelo Inter ao teu lado no Beira Rio
pode ser um cara que quer te matar.
Eu não vou emigrar pro causa disso, mas é inquietante que muitos
jovens e não jovens comentam, em encontros, com certo humor: quando é
que vamos pra lá, ou vamos pra cá…Isso ainda é precoce, mas o fato de
que o mundo que eles estão construindo provoque enorme estranheza em nós
também nos dá um estímulo para consolidar a percepção que combate a
normalização, que mantém a indignação permanente em relação à prisão de
Lula e que não se acostuma nunca ao que eles estão fazendo. Faz parte da
técnica deles, como vários artigos já afirmaram, produzir fenômenos
colaterais para atrair atenções críticas e distrair das políticas
fundamentais que constituem o centro da estratégia deles. Eles
conseguiram criar o “dream team” do horror, a seleção mundial do ruim.
Isso também fará parte da maldição de seus eleitores. Eles terão que se
olhar no espelho e vão dar de cara com essa gente.
Parece que há uma espécie de fascínio pela destruição. Todas as
medidas anunciadas até aqui anunciam uma desconstituição, uma
destruição. Estão anunciando rupturas com todos os acordos
internacionais assinados pelo Brasil, fazendo regressões espantosas. É
uma máquina de perder terreno. O mesmo se aplica à venda de patrimônio.
Estão perdendo território internacional e respeitabilidade, nomeando
pessoas caricatas, liquidando patrimônio nacional e perdendo capacidade
estratégica. É uma agenda totalmente anti-Brasil. Mais do que isso,
trata-se de uma regressão civilizatória. Assim como eles tiveram que
recolher as panelas, que não foram mais localizadas, todas as camisetas
verde-amarelas terão que ser guardadas agora. O próprio presidente deles
fica batendo continência para a bandeira norte-americana. Isso não é
uma caricatura, mas algo gravíssimo.
Sul21: Há alguma comparação possível entre esses sentimentos
de estranhamento e exílio, hoje, e o que sentiu no período do golpe de
64?
Flavio Koutzii: Hoje é muito pior do que em 64.
Naquela época, o inimigo era bem identificado, muitos vestiam uniforme.
Hoje pode ser o vizinho de baixo. Em 64, o problema era com os
“comunas”, os guerrilheiros. Hoje, homossexuais estão sendo perseguidos e
atacados nas ruas. O racismo também está à solta. Não tem comparação, o
que é algo horroroso de dizer. *Fonte: Sul21 (Grifos deste Blog)
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