26 fevereiro 2019

MEMÓRIA

Crítica & Autocrítica - nº 152



“Recuerdos de um bom combate”

Por Júlio Garcia**

Outro dia, ao postar no meu Blog o poema ‘Inverno em Porto Alegre’, veio-me à lembrança um episódio ocorrido ainda na época da - nada saudosa - ditadura militar.

Já faz um bom tempo, mas, como diria um amigo meu, ‘parece que foi ontem!’. O ano era 1980***, se não estou enganado.

A Argentina vivia, assim como o Brasil, sob as botas implacáveis de uma ditadura militar sanguinolenta. O ditador de plantão era o general Videla, o ‘pantera cor-de-rosa’.

No Brasil, o ditador de então era o general Figueiredo (aquele que preferia sentir o 'cheiro de cavalo' ao invés do 'cheiro do povo'). A tortura, o seqüestro e o assassinato dos adversários e presos políticos corria solto nos dois países, mas com maior intensidade no país dos nossos hermanos.

Pois o ditador Videla veio fazer uma visita ao seu “colega” brasileiro. E resolveu dar uma ‘esticada’ até Porto Alegre, onde participaria de algumas “solenidades” ...

Resolvemos então, em solidariedade ao povo argentino, organizar um protesto contra a presença do ditador no solo brasileiro.

O Ato Político teve início por volta do meio-dia no pátio da Faculdade de Direito da UFRGS, na Av. João Pessoa, em Porto Alegre. Começou com pouco mais de 50 pessoas, a absoluta maioria composta por estudantes de várias faculdades, destaque para os colegas da ‘federal’, da PUC, membros de DCEs, estudantes secundaristas e militantes de organizações de esquerda.

Decidimos, após alguns discursos inflamados contra a ditadura de ‘lá e cá’, iniciarmos mais uma passeata pelas ruas centrais da capital.

Começamos a “subir” a Avenida João Pessoa em direção ao centro de Porto Alegre: passo acelerado, palavras-de-ordem, megafones a mil; os estudantes que estavam na fila do almoço do Restaurante Universitário (R.U.) da UFRGS (era já próximo ao meio-dia) foram chamados a participarem; alguns populares também incorporaram-se, a adesão foi aumentando... Quando a passeata chegou à esquina com a Rua André da Rocha já contava com mais de duzentas pessoas. Para nós, já era uma multidão (segundo os critérios ‘drumondianos’)!

Lembro-me bem dos acontecimentos, pois eu integrava a direção da passeata (estava no S.O., nosso "Serviço de Ordem"). Fomos então avisados que a tropa-de-choque da Brigada Militar deslocava-se pela Salgado Filho e vinha em nossa direção. Paramos momentaneamente a passeata para organizar a resistência. A orientação era ‘não aceitar provocação’, mas também não recuar. Gritamos os slogans de praxe: ‘soldado da brigada, também é explorado’, ‘o povo, unido, jamais será vencido’, ‘o povo, na rua, derruba a ditadura’ etc...


Mas não adiantou, a repressão se fez presente – e o ‘pau comeu solto’, com muita violência; o número de brigadianos (do famoso “Choque”) era muito superior ao dos manifestantes.

Os estudantes começaram a debandar pela Rua André da Rocha, pela Salgado Filho, pela João Pessoa, descendo em direção ao campus central da UFRGS...


Um grupo de manifestantes, acuados, sem alternativas, adentrou o R.U. da UFRGS, quebrando os vidros do saguão com os próprios corpos, perseguidos pelo “choque” que não cansava de baixar os cassetetes nas suas costas, cabeças, braços... Quase que “por milagre”, ninguém saiu seriamente ferido... E o R.U. virou trincheira da Resistência. Então, baixada a poeira, decidimos – simbolicamente – “ocupar” o R.U. até a saída do ditador Videla do Brasil. A seguir, o R.U. foi declarado “Território Livre”, símbolo da resistência da juventude contra as tiranias!

Organizou-se o Comando da ocupação, a vigília, turnos, tarefas... Palavras-de-ordem foram escritas nas paredes, murais... Um palco foi montado. Músicos, atores, cantores, militantes revezavam-se ao microfone, todos denunciando as ditaduras latino-americanas e manifestando solidariedade ao ‘Movimento’. Lembro que o pessoal do ‘Oi Nóis Aqui Traveiz’ (grupo teatral de vanguarda) também esteve lá e representou em nosso palco improvisado...

No outro dia estava marcada a ‘reinauguração’ da Praça Argentina, onde o ditador Videla descerraria uma placa alusiva.

Pela manhã a cavalaria da BM, juntamente com o “choque” e seus “equipamentos” (gás lacrimogênio, camburões, fuzis, baionetas, cães etc.), ocuparam a praça. Organizamos então uma nova manifestação [bem mais massiva] e uma vigília na calçada do Centro de Engenharia da UFRGS (o CEUE), que ficava em frente à praça onde o ditador era aguardado.


Após algumas horas, veio a informação que incendiou os “resistentes”: a “reinauguração” da praça - e a visita do ditador a Porto Alegre – haviam sido suspensas!

Demarcamos nossa pequena vitória com mais um ato improvisado, alterando então (simbolicamente) o nome da Praça Argentina para ‘Praça das Madres de Mayo’, em homenagem às mães argentinas (ou “locas”, como eram chamadas) que, corajosamente, denunciavam o assassinato e o desaparecimento de seus filhos pela repressão, ajudando a tornar conhecidos mundialmente os hediondos crimes praticados pelos militares fascistas do país vizinho. Foram mais de sessenta horas de Resistência e Luta!

Quando o ditador Videla saiu do Brasil, encerramos o nosso “Movimento” e liberamos o R.U. Foi mais um episódio na luta travada pelos estudantes – e populares - contra as ditaduras latino-americanas.

Esse combate, comemoramos, nós havíamos vencido! Mas as ditaduras no Brasil, na Argentina e em outros países da América Latina durariam ainda mais alguns penosos anos, mas também acabariam derrotadas, nos anos 80, pela força organizada e resistente do povo.

–Esperamos - e continuaremos alertas, mobilizados, para que não se repitam. Afinal, “a pior das democracias é melhor ... que a ‘melhor’ das ditaduras”...
...

**Júlio César Schmitt Garcia é Advogado, Pós-Graduado em Direito do Estado, Poeta e Midioativista. Foi um dos fundadores do PT e da CUT. - Publicado originalmente no Jornal A Folha (do qual é Colunista) em 22/02/2019. - Fotos: Arquivo ZH, via Jornal Sul21.

***O "Movimento" ocorreu nos dias 22 e 23 de agosto de 1980. 

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